Novos Estudos em Extremo Oriente - Geografia (2025)

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NOVOS ESTUDOS EM EXTREMO ORIENTE André Bueno [org.] Novos Estudos em Extremo Oriente 2 Reitor Mario Sérgio Alves Carneiro Chefe de Gabinete Bruno Redondo Direção Pró-reitora de Extensão e Cultura Cláudia Gonçalves de Lima Produção Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof. André Bueno [Dept. História]. Rede www.orientalismo.blogspot.com Ficha Catalográfica Bueno, André [org.] Novos Estudos em Extremo Oriente. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ, 2022. 183p. ISBN: 978-65-00-54415-2 História da Ásia; China; Japão; Coreia; Extremo Oriente. Novos Estudos em Extremo Oriente 3 Sumário APRESENTAÇÃO por André Bueno ................................................................................................ 5 A INDÚSTRIA DE MICROELETRÔNICA COMO PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO DA COREIA DO SUL por Alexandre Black de Albuquerque ................................. 11 IGUALDADE DE GÊNERO E DEMOCRACIA: A COREIA DO SUL E O MOVIMENTO FEMININO por Amanda de Morais Silva .............................................................................................................. 18 A QUEM EU BUSCO QUANDO VENERO MEUS ANCESTRAIS? UM ENSAIO SOBRE A ANCESTRALIDADE NA CHINA por André Bueno .......................................................................... 27 OS IMPACTOS BILATERAIS DA BELT AND ROAD INITIATIVE NAS RELAÇÕES SINO-AFRICANAS DO SÉCULO XXI por Cassiano Schwantes Correa e Teodora Maicá Soares ....................................... 34 A SEPULTURA DO HOMEM DE YINGPAN: CONTATOS CULTURAIS HELENÍSTICOS E CHINESES? por Cristian de Silveira ................................................................................................................ 44 GÊNERO E REGIMES DITATORIAIS: O CASO COMPARADO ENTRE BRASIL E COREIA DO SUL por Eduarda Christine Souza Pucci e Vitória D`Oliveira Abrantes ..................................................... 56 PROCESSOS INDUSTRIAIS E HISTÓRICOS NO LESTE ASIÁTICO: UMA COMPARAÇÃO ENTRE CHINA, COREIA DO SUL E JAPÃO (1950-1980) por Eduarda Christine Souza Pucci .................... 63 A CHINA E O CHÁ: ENSAIO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA BEBIDA NA CULTURA E NAS PRÁTICAS ALIMENTARES CHINESAS por Felipe Ruzene .............................................................. 70 UM HISTÓRICO DE RUSGAS E OS ESFORÇOS RECENTES DE PACIFICAÇÃO NAS RELAÇÕES BILATERAIS SINO-VATICANAS por Felipe Vidal Benvenuto Alberto ............................................ 78 NATSUME SOSEKI EM KOKORO (“CORAÇÃO”): A IDENTIDADE COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DA MODERNIZAÇÃO JAPONESA por Levi Yoriyaz .............................................. 86 AS CRISES QUE ORIGINARAM AS MIGRAÇÕES E A DIÁSPORA CHINESA EM MEADOS DO SÉCULO XIX por Maria Teresa Lopes da Silva ........................................................................................... 93 COMÉRCIO TRANSPACÍFICO: O JAPÃO COMO IMPORTADOR DE PRODUTOS DE PRODUTOS MINERAIS DO BRASIL por Matheus Henrique da Silva Alcântara e José Otávio Aguiar............ 101 IMBRICAÇÕES ENTRE HISTÓRIA INDIANA E CULTURA HINDU: O CASO LITERÁRIO DO RĀMĀYAṆA DE VĀLMĪKI por Matheus Landau de Carvalho ..................................................... 111 A OBRA XUNZI COMO FONTE DE PESQUISA DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA CHINESA ANTIGA por Matheus Oliva da Costa ............................................................................................................ 119 HANGUL (한글): BREVE ANÁLISE SOBRE A COMPOSIÇÃO DO ALFABETO COREANO por Mayara Bassanelli e Felipe Ruzene ........................................................................................................ 128 A LENDA DAS RAPOSAS JAPONESAS NA SOCIEDADE DA ERA EDO (1603-1868) por Olívia Nogueira Flausino e Juliana Bastos Marques ............................................................................ 135 Novos Estudos em Extremo Oriente 4 OS JESUÍTAS E O USO DA RETÓRICA: O EXEMPLO DE MATTEO RICCI NA CHINA por Renan Morim Pastor ............................................................................................................................ 141 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O GOVERNO E A SOCIEDADE CHINESA DURANTE O PRIMEIRO SÉCULO DA DINASTIA QING por Renata Ary ............................................................................. 147 ECOS DE UMA INDEPENDÊNCIA NÃO CONQUISTADA: TEMÁTICAS NA LITERATURA COREANA DO SÉCULO XX por Suéllen Gentil e Alexsandro Pizziolo .......................................................... 152 MA: ESPAÇOS DE TRANSIÇÃO E RESPIRO NAS ARTES JAPONESAS por Victor Vidal ................. 160 O PROCESSO DE REMEMORAÇÃO DA PRESENÇA PORTUGUESA NO JAPÃO NO SÉCULO XVI por Willian Carlos Fassuci Larini ...................................................................................................... 166 PASHTUNISTÃO: ENTRE O EXTREMISMO ISLÂMICO E O PACIFISMO, O ETNONACIONALISMO NO AFEGANISTÃO E PAQUISTÃO por Yuri Alan Maciel Tesch ......................................................... 173 Novos Estudos em Extremo Oriente 5 APRESENTAÇÃO por André Bueno No Lunyu, Confúcio dizia que ‘entre os quatro mares, somos todos irmãos’, mas costumamos esquecer disso quando pensamos nas dimensões culturais e geográficas do mundo. Para a maior parte dos brasileiros, o ‘Oriente’ continua a ser um extremo do mundo; não sabemos exatamente onde começa ou termina, o definimos como um espaço a Leste – sem lembrar que podemos chegar às mesmas águas do oceano Pacífico indo pelo Oeste. Na redefinição contínua de termos que possa dar conta de explicar o mundo que ainda nos é ‘extremo’, a outra ponta do nosso conhecimento das coisas, vamos paulatinamente batendo o mato de nossas ignorâncias, criando trilhas em meio a livros, informações e redes que permitam compreender esses outros tais como eles desejam sê-lo. E, contudo, cabe em nossas dimensões de conhecer a necessidade premente de ver que o longe está mais perto do que usualmente imaginamos. Durante séculos transitaram pelo Brasil indianos e chineses, que foram compondo nosso cenário social e cultural, e o país foi se formando índio, africano e asiático muito antes da chegada de Dom João VI e sua corte. Depois vieram os japoneses no início do século 20, e sem que percebamos, estamos imersos em elementos culturais do Extremo Oriente, incorporados tão naturalmente em nossos hábitos e costumes que mal somos capazes de defini-los. Agora, retomamos o interesse pelo mundo global, saindo aos poucos da caverna platônica que muitas vezes nos colocamos, e partimos ao reencontro do lugar onde o sol nasce – oriri, palavra que formou o ‘Oriente’, essa luz que abre o dia e que deu azo a outras tantas que implicam em achar algo, aprender, tal como ‘orientar-se’, ‘orientação’, ‘orientar’, etc. Cabe-nos, em caráter ugente, ‘orientarmo-nos’ sobre as dinâmicas do mundo, passado e presente, construindo a lucidez tão necessária à sobrevivência planetária. Adolpho Justo Bezerra de Menezes [1910-2006], um dos maiores diplomatas que o Brasil já conheceu, e cuja lucidez sobre a importância da Ásia já o incitara a luta pelo seu conhecimento, firmou em seu livro Brasil e o mundo ásio-africano [1960] um trecho que expressa perfeitamente nosso projeto nessa obra: Novos Estudos em Extremo Oriente 6 Devemos martelar paulatina, inexoravelmente, doa a quem doer, dentro e fora de nossas fronteiras, que, apesar de ocidentais, não somos “vinhos da mesma pipa”. Quer por nossa origem luso-tropicalista (na apropriada expressão de Gilberto Freyre), quer pelas misturas raciais negro-ameríndias de nossos tempos de colônia, quer ainda pelos mais recentes influxos de sangues das mais diversas proveniências, somos um país, um povo, que descrê completamente em separatismosda entrada do budismo na China, não resta dúvida de que a reencarnação passou a fazer parte da religiosidade popular e também da religião daoísta, e se tornou uma das crenças fundamentais da sociedade chinesa. Isso criou o interessante dilema proposto por Li Liweng. Ou seja, em algum momento nossos ancestrais, aqueles que veneramos como os fundadores de nossa comunidade, podem ser nós mesmos. Seria estranho que uma pessoa olhasse para o nome do seu avô na tábua dos ancestrais, ou lesse histórias sobre como ele foi importante para comunidade, e se inspirasse profundamente nele, já que essa pessoa poderia ter sido o mesmo espírito que foi o seu avô ou bisavô. Um caminho para acomodar esse conflito de ideias foi fazer com que a veneração aos ancestrais fosse colocada cada vez mais em um tempo passado, com distanciamento de três ou quatro gerações familiares. Mesmo assim isso não resolve o problema. Quando o médium ou o xamã nos informam que o ancestral não retornará mais ou que ele desapareceu, isso tanto pode significar que a família ou comunidade não estão protegidas pelo espírito, como pode significar que esse espírito retornou ao mundo material. Por essa razão, nos aproximamos da ideia de que a veneração aos antepassados estaria muito mais próxima de um sistema de memória histórica baseada nas concepções de Confúcio, perdendo o seu papel espiritual. No entanto, essas questões se projetam sobre o mundo moderno, quando vemos que as conexões genealógicas e espirituais continuam a constituir um elemento central na ideia de família e de deveres sociais. Questões contemporâneas Podemos citar quatro exemplos de como a questão dos antepassados novamente está conectada ao problema da Piedade filial, e como elas se transformaram em um dos pontos de maior tensão nas transformações da China contemporânea. O primeiro deles é de como podemos migrar para outras regiões ou países afastando-nos da comunidade geográfica de abrangência do Espírito ancestral protetor. A veneração ao ancestral concede grande importância ao papel do território e do domínio da terra ao qual o antepassado se conecta, o que muitas vezes pode provocar um relativo desconforto em ir morar em lugares distantes. Novos Estudos em Extremo Oriente 31 Os chineses de hoje encontram soluções adequadas para trabalharem em outros países ou cidade, mesmo assim, 70% dos chineses afirmam continuar praticando o culto aos ancestrais e visitam ao menos uma vez por ano sua terra natal e sua família [Woo, 2010; Hu, 2016]. Isso significa que de alguma forma eles buscam a manutenção de uma ligação com a terra natal e, por conseguinte, com o mundo espiritual que envolve esse espaço. Isso gera um segundo problema que é a questão da descendência. Na China Continental, onde existem regulações sobre o número de filhos, como estruturar uma família dentro do sistema de veneração aos antepassados? A formação de novas famílias, a partir de indivíduos que se constituem os últimos representantes de uma linhagem, constrói novas comunidades espirituais, ao ampliar a dimensão relacional entre linhagens espirituais e materiais dentro das novas famílias? Elas reorganizam ou fortalecem uma dimensão comunitária e o intercâmbio material e espiritual? [Hu & Tian, 2018] Uma terceira questão é de como ficam os cuidados com os familiares mais antigos em uma sociedade onde as famílias se reduziram, o custo de vida aumentou, e as crenças religiosas pressupõem que a piedade filial ainda é uma resposta para os dilemas da organização social. Lembremos que esses indivíduos solitários, que compõe uma nova sociedade estruturada dentro de uma ideologia ateísta, são ao mesmo tempo pessoas que compartilham crenças religiosas antigas. Eles enfrentam os desafios de contribuir para o sistema de Previdência Social e para manutenção da ideia de família, em um mundo em que essas questões foram fortemente abaladas [Bueno, 2017 & 2021]. Como Xinran Xue mostrou em seu livro Compre-me o céu [2016], a nova sociedade chinesa é forçada a repensar a sua conexão com o passado a partir da formação de novas estruturas familiares. Nesse sentido, o desafio proposto pela religiosidade popular e pelas tradições confucionistas é de saber qual a força e o papel da atuação dos elementos espirituais na definição das novas condutas éticas e Morais que permeiam a existência da sociedade chinesa. O quarto problema a considerar é o uso da veneração dos ancestrais como um motor para invocações nacionalistas. A manipulação do passado é um recurso comum, promovido por diversos governos, que defendem interesses de afirmação política, cultural ou racial. No caso da China, a invocação dos ancestrais está sendo cada vez mais usada para fortalecer um sentido cultural e étnico que naturalmente pode excluir minorias e aumentar as tensões sociais. Essa prática tem sido observada com considerável preocupação, pois pode facilmente resvalar para discursos xenófobos ou neofascistas. Uma ‘não-conclusão’ Não devemos esquecer em momento algum que a religiosidade ainda constitui um forte elemento ordenador dentro da sociedade, e que a concepção de vida após a morte influencia a maneira como os indivíduos fazem os seus planos para o futuro. Por isso a veneração dos ancestrais não foi abandonada, e de Novos Estudos em Extremo Oriente 32 fato tem tido um aumento, com o clima de maior liberdade individual que o país presencia agora. No entanto, ainda resta saber como essa estrutura se manterá frente ao desafio de uma metafísica reencarnacionista, que reduz a veneração aos antepassados em uma ideia vã. Essa questão intrigante, para a qual não temos resposta agora, provavelmente se tornará pauta das discussões religiosas e filosóficas que permearão a transformação da sociedade chinesa em um futuro próximo. Referências André Bueno é Professor Adj. de História Oriental da UERJ. Baker, Hugh D. R. Chinese Family and Kinship. London: Macmillan, 1979. Billeter, Térence. ‘Chinese Nationalism Falls Back on Legendary Ancestor’. China Perspectives, n.18, 1998, 44-51. Bueno, André. ‘A piedade filial e a reconstrução da sociedade chinesa contemporânea’. Jiexi Zhongguo, 35, 2021, 12-23. Bueno, André. 'O Conceito de sonho na China antiga' in Mota, Arlete José; Campos, Carlos Eduardo da Costa.Sistemas de Crenças, Mitos e Rituais na Antiguidade. São João de Meriti [RJ]: Desalinho, 2019, 19-35. Bueno, André. ‘O Futuro pertencerá ás crianças?’ Jiexi Zhongguo, 24, 2017, 75-81. Coe, Kathryn, and Ryan O. Begley. “Ancestor Worship and the Longevity of Chinese Civilization.” Review of Religion and Chinese Society 3.1 (2016): 3–24. Feuchtwang, Stephan. The Imperial Metaphor: Popular Religion in China. London: Routledge, 1992. Granet, Marcel. Le Religion des Chinois. Paris: Albin Michel, 2005. [orig. 1922] Hu, Anning e Tian, Felicia. ‘Still under the ancestors’ shadow? Ancestor worship and family formation in contemporary China’. Demographic Research, Vol. 38, Art. 1, 2018, 1-36. Hu, Anning. ‘Ancestor worship in contemporary China: An empirical investigation’. China Review 16(1), 2016, 169-186. Joppert, Ricardo. Oposição Complementar: arte oriental na coleção Castro Maya. Rio de Janeiro: Castro Maya, 1996. Liu, L. Who were the ancestors? The origins of Chinese ancestral cult and racial myths. Antiquity, 73(281), 1999, 602-613. Novos Estudos em Extremo Oriente 33 Rosker, Jana. Li Zehou’s ethics and the importance of Confucian kinship relations: the power of shamanistic rituality and the consolidation of relationalism (關係主義) in Asian Philosophy, Volume 30, n.3, 2020, 230-241. Seiwert, Hubert. "Ancestor Worship and State Rituals in Contemporary China: Fading Boundaries between Religious and Secular". Zeitschrift für Religionswissenschaft, vol. 24, no. 2, 2016, pp. 127-152. Woo T.L. ‘Chinese Popular Religion in Diaspora: A Case Study of Shrines in Toronto’s Chinatowns’.Studies in Religion. 2010; 39 (2):151-177. Xue, Xinran. Buy Me the Sky: The remarkable truth of China’s one-child generations. London: Rider & Co., 2016. Novos Estudos em Extremo Oriente 34 OS IMPACTOS BILATERAIS DA BELT AND ROAD INITIATIVE NAS RELAÇÕES SINO-AFRICANAS DO SÉCULO XXI por Cassiano Schwantes Correa e Teodora Maicá Soares China e o Continente Africano no Século XXI: uma Análise das Relações Econômicas entre 2000 e 2013 China e África possuem um longo histórico de convivência e trocas, sendo o continente uma das localidades alcançadas pelas famosas expedições do general Zheng He no século XV [KISSINGER, 2011]. Porém, podemos ver uma maior aproximação entre os dois atores na segunda metade do século XX. Após a ascensão do Partido Comunista Chinês (PCC) ao governo em 1949, a China buscou aproximar-se dos países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina. Um marco nas relações entre o país e o continente africano é a Conferência de Bandung, [OURIQUES, 2014]. A China aproximou-se consideravelmente dos países do continente africano através de visitas de representantes chineses, como Zhou Enlai, e, também, através do financiamento de movimentos pró-independência. Conforme aponta Xavier [2011], o continente africano possuía papel fundamental na política externa chinesa na década de 90 tendo em vista o objetivo chinês de aumentar seu prestígio no Sistema Internacional e construir uma ordem internacional multipolar, contrariamente a via unipolar estadunidense. Assim, ainda conforme a autora, os anos 90 foram marcados pelo aumento das relações diplomáticas e econômicas entre China e o Continente, ambas como instrumento do soft power chinês, principalmente como uma forma de reconhecimento diplomático em relação a Taiwan. Essa reaproximação da África com a China, e o surgimento de novas alianças diplomáticas durante o período, tem como um dos motivos os impactos do fim da Guerra Fria no continente africano. A África foi um dos palcos centrais das disputas por esferas de influência entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria. Ambas potências foram responsáveis por financiar movimentos de libertação e investir economicamente no Continente. Porém, com o fim da Guerra Fria, e a dissolução da União Soviética, os países africanos perdem o seu poder de barganha e os investimentos externos no país diminuem consideravelmente. Assim, a reaproximação ocorre através de necessidades africanas, ocasionadas pelo vácuo deixado por Estados Unidos e União Soviética, e necessidades econômicas internas chinesas. Novos Estudos em Extremo Oriente 35 Um símbolo da aproximação entre China e África na década de 90 é a criação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) em 2000. O fórum serviria como uma ferramenta para aproximar, ainda mais os dois atores, trabalhando através da “igualdade política e confiança recíproca, cooperação econômica win-win (todos se beneficiam de alguma maneira) e intercâmbio cultural” [LOPES, 2013, p. 3]. Desde o primeiro fórum, realizado em Pequim em 2000, foram estabelecidos importantes compromissos entre as partes para que, visando a cooperação Sul-Sul, fosse desenvolvida uma parceria estratégica em busca do desenvolvimento econômico dos países africanos e da China [RYSDYK, 2010]. Ao longo dos anos ficou evidente que o fórum não seria apenas um vínculo econômico mas também um espaço de cooperação em segurança, tecnologia, infraestrutura, questões sociais, assim como outros temas. Os anos 2000 também marcam o aumento dos valores de Investimento Externo Direto (IED) da China como uma prática da política chinesa going global. Lopes [2013] aponta que o crescimento dos IEDs chineses no continente africano chegou a cerca de US$ 72 bilhões em 2008. Com a crise financeira global de 2008, houve uma certa diminuição no fluxo de capital investido nos países africanos nos dois anos seguintes. Levando isso em conta, durante o IV FOCAC, realizado em 2009, representantes chineses e africanos buscaram alternativas de cooperação no enfrentamento da crise. Apesar de não terem sido criadas novas ferramentas para o desenvolvimento econômico, as que já existiam foram ampliadas, como o Fundo de Desenvolvimento China-África, diminuição de tarifas de importação e foram feitos novos empréstimos destinados a fortalecimento da infraestrutura [XAVIER, 2011]. A reunião de 2009 também abordou com atenção questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável e a intercâmbios educacionais, com o lançamento do Programa de Parceria Científica e Tecnológica China-África [RYSDYK, 2010]. A ascensão econômica da China e o seu constante desenvolvimento econômico a partir da política de reforma e abertura na década de 80 tiveram impacto nas importações e importações entre o país e a África. O maior número de importações da China com origem na África corresponde a bens primários (minérios, petróleo, metais, ferro, aço, entre outros), recursos essenciais para a economia chinesa [XAVIER, 2011]. Em contrapartida, as importações africanas da China correspondem principalmente a produtos manufaturados, em grande parte produtos eletrônicos, máquinas, equipamentos de transporte, vestuários e outros [RYSDYK, 2010]. Tratando das importações e exportações sino-africanas no início do século XXI, podemos observar que, ainda que no período aqui analisado o fluxo de capitais tenha aumentado consideravelmente com o continente como um todo, alguns países concentram de forma mais acentuada esse fluxo [RIBEIRO, 2015]. Embora o FOCAC represente um avanço nas relações da China com o continente africano em unidade, as relações bilaterais ainda são grande parte desse intercâmbio comercial e financeiro. Podemos perceber isso Novos Estudos em Extremo Oriente 36 principalmente ao observarmos as importações chinesas dos países africanos. Ao longo dos anos pode ser observada uma concentração das importações chinesas de três países no continente africano: Angola, África do Sul e Congo, em decorrência da demanda chinesa por certos produtos e a disponibilidade deles nos países acima citados. Em relação às exportações chinesas para a África, como elas consistem de uma maior variedade de produtos, em grande maioria manufaturados, as possibilidades de fluxo são maiores e, consequentemente, uma maior distribuição entre os países do Continente [RIBEIRO, 2015]. Para encerrarmos essa seção, que visava analisar de maneira geral o desenvolvimento da relação econômica entre China e África entre 2000 e 2013, elencaremos os principais pontos do white paper do governo chinês sobre a cooperação econômica e comercial com o continente africano publicado em 2013. O documento foi dividido em seis partes que abordam: I) Promoção do Desenvolvimento Sustentável do Comércio; II) Melhorar o Nível de Cooperação em Investimento e Financiamento; III) Fortalecer a Cooperação na Agricultura e Segurança Alimentar; IV) Apoiar a Construção de Infraestrutura Africana; V) Enfatizar os Meios de Sustento e Capacitação do Povo Africano; VI) Promoção da Cooperação no Âmbito Multilateral. Através do documento do governo chinês, são, primeiramente, apresentados impressionantes dados relacionados às trocas comerciais entre China e África nos dez anos anteriores. Posteriormente são apresentadas as novas propostas do governo chinês para o continente africano, levando em conta a construção de um desenvolvimento saudável do comércio entre as partes. O white paper também reforça a importância que a cooperação sino-africana tem para a China e para a África, enfatizando a validade da cooperação win-win no histórico de relações entre a China e os Estados africanos. O documento também reafirma o pragmatismo chinês em sua política externa: “Enquanto procura avançar no seu próprio desenvolvimento, a China tenta oferecer toda a assistência que puder à África sem estabelecer quaisquer condições políticas ebeneficiar o povo africano através de avanços no desenvolvimento.” (tradução nossa) [Conselho de Estado da República Popular da China, 2013, p. 7]. O pragmatismo chinês em relação à África vem desde o século passado e foi um dos atrativos da parceria econômica com a China. Enquanto adota esta postura pragmática, a China garante um maior leque de oportunidades e alianças ao redor do mundo, incluindo o continente africano. Ao prestar auxílio financeiro e investir no Continente, a China utiliza-se de sua capacidade econômica como uma ferramenta política, aumentando o impacto do soft power chinês na África [XAVIER, 2011]. A Belt and Road Initiative, ou ainda Nova Rota da Seda, que será abordada posteriormente, pode ser vista como, além de um mega projeto da política externa chinesa, o novo recurso do poder brando chinês dentro do Sistema Internacional, assim como foi a Rota da Seda iniciada durante a dinastia Han. Novos Estudos em Extremo Oriente 37 A Criação da Belt and Road e seus Impactos para as Relações Bilaterais Sino-Africanas entre 2013 e 2020 A BRI surgiu em 2013 sob iniciativa do presidente Xi Jinping como um dos maiores projetos de infraestrutura da história da China e da Ásia. A iniciativa visa atuar como um mecanismo de aceleração do crescimento chinês a partir de obras transcontinentais que abarcam diversos países pertencentes ao corredor da histórica Rota da Seda. O projeto, hoje, abarca mais de um terço do PIB mundial e dois terços da população global [BELT AND ROAD, s/d]. De tal forma, o programa age para aumentar a conexão da China não somente com os países euroasiáticos, mas também com todos os países do globo [KOTZ, 2018]. Em 2015, a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (CNDR), o Ministério das Relações Exteriores (MOFA) e o Ministério do Comércio (MOFCOM) da República Popular da China (RPC), com autorização do Conselho de Estado lançaram o esboço oficial da iniciativa, contendo os objetivos, princípios e ideias. Assim, o projeto como um todo, em termos de custos, está aproximadamente voltado ao valor de US$ 4 a 8 trilhões. Para o financiamento do projeto, as instituições estatais, internacionais e privadas estão empenhadas para pôr em prática a iniciativa. De forma geral, a intenção da iniciativa a partir de 2015 com o documento oficial lançado, direciona-se em: “promover a conectividade dos continentes asiático, europeu e africano e seus mares adjacentes, estabelecer e fortalecer parcerias entre os países ao longo do Cinturão e Rota, estabelecer conectividade multidimensional, multicamada e composta redes e realizar um desenvolvimento diversificado, independente, equilibrado e sustentável nesses países” (tradução nossa) [BELT AND ROAD INITIATIVE]. Pautasso e Ungaretti [2017] ressaltam a importância geoestratégica da BRI, de forma que a China desde a crise de 2018 começou a atuar de forma mais ativa na política internacional através de sua política externa pacífica. Durante o 18ª Congresso do PCC em 2012, definiu-se novas diretrizes para a atuação diplomática econômica chinesa no Sistema Internacional, de maneira que a BRI nada mais é que “uma ampliação e aprofundamento de proatividade da China na configuração da dinâmica de integração regional” [PAUTASSO; UNGARETTI, 2017, p. 28]. Ou seja, atualmente, segundo Nedopil [2022], a BRI já abarca de 138 a 145 países, dependendo ainda do comunicado oficial de alguns países. Entretanto, já se pode citar alguns, sendo eles divididos entre as regiões: 42 na África Subsaariana, 34 na Europa e Ásia Central, 25 do Leste Asiático e do Pacífico, 20 na América Latina e Caribe, 18 no Oriente Médio e Norte da África e 6 no Sudeste Asiático. http://en.ndrc.gov.cn/http://www.fmprc.gov.cn/mfa_enghttp://english.mofcom.gov.cn/https://www.google.de/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwibkPLM8vPaAhWpA5oKHVczBwIQFgg-MAE&url=http%3A%2F%2Fenglish.gov.cn%2F&usg=AOvVaw3as2ZJRbXyBr02aVk-niS2 Novos Estudos em Extremo Oriente 38 A figura abaixo apresenta os principais países que adentraram na BRI após a assinatura do memorando de adesão, especificando ainda os anos respectivos de cada entrada. Figura 1. Países da Belt and Road Initiative e suas adesões ao longo dos anos. Fonte: The Green Finance & Development Centera [2022] Na sequência, ainda, a iniciativa se divide em dois segmentos, o terrestre e o marítimo. O conhecido Cinturão Econômico da Rota da Seda (SREB), que abrange o projeto terrestre, se baseia em 6 corredores transcontinentais, sendo eles, a Nova Ponte Terrestre Eurasiática; o eixo China-Mongólia-Rússia; o eixo China-Ásia Ocidental; o eixo da Península China-Indochina, o eixo do Corredor Econômico China-Paquistão e o Corredor Econômico Bangladesh-ChinaÍndia e Mianmar [KOTZ, 2018]. Logo, o outro projeto denominado Rota da Seda Marítima (MSR) abrange desde o Mar do Sul da China e o Oceano Pacifico, passando pelo Leste Asiático até o Oceano Índico e envolvendo a África Subsaariana até o Mar Mediterrâneo, chegando na Europa. Além de, perpassar pela região polar, cobrindo todo Oriente. A Figura 2 abaixo esclarece a iniciativa terrestre e marítima. Novos Estudos em Extremo Oriente 39 Figura 2. Mapa da Silk Economic Road, Maritime Silk Road. Fonte: Council On Foreign Relations, 2020. Assim, como já supracitado, a China é um gigante econômico que detém uma linha produtiva constante que necessita de recursos naturais disponíveis a todo o momento, por isso, as relações deste com países exportadores de commodities se faz visível a partir da BRI. Dessa maneira, Visentini e Oliveira [2012] expressam como a África nesse contexto é parceiro importante para a China nos âmbitos econômicos, exportando os recursos de baixo valor agregado, porém, essenciais para a continuidade do crescimento chinês. Diferentemente dos países ocidentais, o dragão asiático tem atuado como ator bilateral com os países africanos a partir de investimentos brutos nas mais diversas áreas, respondendo a anseios e necessidades de forma eficaz aos governos africanos. Os autores ainda citam que “as novas relações da China (e da Ásia) com a África, com menor participação dos centros financeiros do Atlântico Norte, marcam o declínio do ciclo histórico de longa duração de Ocidentalização do mundo” [VISENTINI; OLIVEIRA, 2012, p. 39]. Por mais, a partir de 2013, a China iniciou uma nova fase de estreitamento com o Sul global a partir da BRI, em especial, a MSR que abarca o continente africano. De tal modo, a área subsaariana africana que o projeto envolve, em especial o Chifre Africano, faz-se região estratégica para a aprimoração dos investimentos chineses, seja a partir da instalação de setores industriais ou seja para construção de rodovias e ferrovias que possuem o objetivo de interligar as economias africanas às principais empresas chinesas que se encontram na região [PAUTASSO; UNGARETTI, 2017]. Países que se encontram na costa oriental africana são fundamentais para o posicionamento da China até o Canal de Suez, principal entrada para o Mar Mediterraneo e consequentemente para a Europa. Novos Estudos em Extremo Oriente 40 Pautasso [2016] menciona que em uma viagem diplomática no ano de 2016, o presidente Xi Jinping destacou a necessidade de incentivo às empresas chinesas a se instalarem no país para auxiliarem o governo em novos projetos de infraestrutura, em especial, para a construção no mesmo ano do Novo Canal de Suez. O autor ainda cita o Djibuti como exemplo da penetração chinesa, o governo chinês pretende construir a primeira base ultramarina naval sob a justificativa de “tratar-se de instalações de apoio logístico para os esforços de combate à pirataria, de assistência humanitária e de manutenção da paz” [PAUTASSO, 2016, p. 133]. Logo em 2013, já sob o governo Xi, a China ultrapassou investimentos de US$ 75 bilhões não somente em projetos de infraestrutura,mas também em destinos como educação, saúde, transporte e na sociedade civil como um todo [BBC, 2013]. Além disso, Segundo o Center for Global Development [2022], no ano de 2020, 15% de todo o investimento que o continente recebeu para as áreas de construção civil vieram da China, e além disso, estima-se que a China têm oferecido mais dinheiro para parcerias público-privadas de infraestrutura na China do que os próprios organismos financiadores ocidentais. Portanto, a partir de tais dados, o que se percebe é um aprofundamento das relações sino-africanas no governo Xi Jinping, em especial sob o aparato do projeto da BRI justamente como justificativa para tal intensificação das relações bilaterais. A construção desses mecanismos de investimento e de cooperação nas mais diversas áreas dos países africanos representam a nova diplomacia posta em prática através da iniciativa chinesa de 2013, de modo que a África começa a representar um novo foco de desenvolvimento após tantos anos de estagnação, ainda gradativo, porém com maior parceria a partir da relação com a segunda maior economia do mundo, a China. Nesse sentido, por fim, Pautasso [2016] salienta a BRI como instrumento da China para a “nova configuração de poder global”, mas além disso, ressalta a inserção da África na MSR como oportunidade de projeção no Sistema Internacional, rompendo fronteiras nas cooperações Sul-Sul. Conclusão A Nova Rota da Seda desde o seu lançamento em 2013 serve como uma nova ferramenta de estreitamento da cooperação bilateral China-África. A hipótese levantada nesse artigo, de que a Belt and Road Initiative representou um marco para uma nova fase das relações sino-africanas a partir de 2013, corrobora-se a partir da visão de que a BRI representa não apenas uma nova etapa nas relações sino-africanas, como também um símbolo da atual conjuntura internacional de certa forma marcada pelo declínio do domínio ocidental. Desta forma, podemos observar um aprofundamento das trocas entre China e os Estados africanos após o início do Governo Xi Jinping e, também, da implementação da Nova Rota da Seda. Apesar das exportações de commodities serem uma parte fundamental desta relação, tendo em vista a grande demanda chinesa das mesmas em busca de manter o seu acelerado Novos Estudos em Extremo Oriente 41 crescimento econômico, as trocas entre os dois atores vão muito além da exportação de commodities e importação de bens manufaturados. A cooperação win-win, característica da política externa chinesa, se aplica nas relações China-África, sendo os benefícios dessa cooperação observados nos dois lados. No lado africano, a China é, atualmente, o maior credor e a maior fonte de IED do continente africano. Esses investimentos são destinados às mais variadas áreas, como por exemplo infraestrutura, educação, cultura, tecnologia, saúde, entre outros. Desta forma, a China ocupa um vácuo de investimentos na África, observado após o fim da Guerra Fria, e, assim, atende as demandas históricas que o continente possui em setores como o de infraestrutura. Assim, a Nova Rota da Seda surge como uma ferramenta de renovação da economia, e também da política externa da China, a partir de 2013, caracterizando a mudança de postura da China no Sistema Internacional que Yan [2018] conceitua como transição de Keeping a Low Profile para Striving for Achievement. Assim como apontado durante o artigo, a África cumpre um papel essencial na consolidação dos objetivos da Nova Rota da Seda e, consequentemente, na manutenção do desenvolvimento econômico chinês. O próprio governo chinês classifica a Nova Rota da Seda como um instrumento de promover uma cooperação mais avançada entre a China e a África. No white paper denominado “China and Africa in the New Era: a Partnership of Equals”, publicado em 2021, o governo chinês expressa sua vontade de construir uma aliança ainda mais forte entre China e África, utilizando a Belt and Road Initiative como um espaço onde essa relação pode ser aprofundada e, assim, estabelecer um novo marco nas relações China-África. A partir do advento da Belt and Road Initiative em 2013 analisamos uma intensificação na cooperação bilateral entre China e os países do continente africano, corroborando com a nossa hipótese de que o megaprojeto chinês marca uma nova etapa nas relações sino-africanas. Abriu-se um novo leque de possibilidades para a China e os Estados africanos, permitindo a expansão das trocas entre eles e, também, as potencialidades dessa relação. Referências Cassiano Schwantes Correa e Teodora Maicá Soares são graduandos do oitavo período de Relações Internacionais na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e pesquisadores do Grupo de Pesquisa de Índia e Ásia Oriental da UNIPAMPA coordenado pela professora doutora Anna Carletti. Belt and Road Initiative. Disponível em: https://www.beltroad-initiative.com/belt-and-road/ China promete US$ 60 bilhões para desenvolvimento da África. Estado de Minas Internacional. 03/09/2018. 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Os reinos que sucederam o império de Alexandre na região da Ásia Central servem para evidenciar essa constatação, com o chamado reino Greco-Báctrio sendo referido por autores como Joe Cribb como: “um grande centro cultural, de onde a cultura grega irradiava através da Ásia Central” [CRIBB; HERMANN, 2007, p. 63]. O fim dos reinos gregos na região da Ásia Central e Meridional deu início a um período de formação de novos reinos e impérios ao longo desse mesmo território, formados principalmente por grupos originalmente nomádicos, como foi o caso do Império Kushan e do Império Parta [BOARDMAN, 2015; GOODY, 1996]. As influências culturais helenísticas dentro dos Impérios Parta e Kushan, mesmo com a ruptura do controle grego nessas regiões, se mantiveram, como pode ser observado nas produções imagéticas budistas de Gandhara nos primeiros séculos da Era Comum, no Império Kushan, demonstrando uma influência helenística incorporada às tradições budistas existentes na região. Essas influências helenísticas, porém, precisam ser vistas como fatores que superam as descrições que as identificam como simples “continuidades” da presença da cultura grega na região, e que podem demonstrar processos de ressignificação e de transformação de produções imagéticas, que as diferenciariam das produções gregas que as antecederam ou que foram concomitantes temporalmente em seu processo de produção. E dessa forma, demonstrando a sua adequação à realidade cultural local complexa onde as produções imagéticas eram produzidas. Esse processo seria o que Jerry H. Bentley [1993], em suas discussões sobre contatos culturais na Antiguidade, chamaria de sincretismo cultural, sendo esse um “acordo” ou uma forma de mediação entre as culturas de diferentes grupos envolvidos em um processo constante e interminável entre as relações de diferentes grupos em contato, que age como um reflexo dos fatores econômicos, políticos e sociais estabelecidos em diferentes regiões e entre esses diferentes povos e civilizações. Uma das causas para esse processo existente de transformações Novos Estudos em Extremo Oriente 45 e ressignificações das produções culturais entre esses diferentes grupos foi, por exemplo, o desenvolvimento das chamadas Rotas da Seda, que formavam rotas transcontinentais que iam desde o Império Romano até o Império Chinês nesse contexto de desenvolvimento e de contatos entre diferentes tradições de produções imagéticas. Os contatos entre diferentes culturas desenvolvidos a partir das Rotas da Seda nesse período também podem ser evidenciados pelas possíveis similaridades apontadas entre as produções imagéticas de Gandhara, recém descritas, com produções imagéticas romanas do mesmo período [BARISITZ, 2017, p. 42; BEHRENDT, 2007, p. 4 e 39; BENTLEY, 1993, p. 2-38; CRIBB, 2021, p. 669-670 e 675-677; CRIBB; HERMANN, 2007, p. 62-64; DECAROLI, 2015, p. 13-14; LIU, 2010, p. 43; MORRIS, 2021, p. 583-584 e 586-590]. Dentro desse contexto de sincretismos culturais e de grandes rotas transcontinentais que ligavam as grandes civilizações no período dos últimos séculos A.E.C e dos primeiros séculos da Era Comum, a região de Xinjiang, atual província da China, se estabelece como um ponto de conexão entre o Império Chinês com a região da Ásia Central e, consequentemente, com as civilizações ali inseridas e com as rotas comerciais que atravessavam essas regiões. Dessa forma, essa região forma uma ligação entre o Extremo Oriente, na figura do Império Han da China, que controlava a região de Xinjiang nesse período, com a região da Ásia Central e com as civilizações nela inseridas, como o Império Kushan, e em um grau menor o Império Romano, estando este nas margens ocidentais das Rotas da Seda. A região de Xinjiang se sobressai como uma região de grandes descobertas arqueológicas dentro desse recorte temporal da Antiguidade, com numerosos achados têxteis mantendo um nível de conservação bem alto, devido ao seu clima árido. Assim sendo, o presente trabalho busca analisar um destes achados arqueológicos, o chamado de “Homem de Yingpan”, sendo este um homem sepultado encontrado em Yingpan, que possui em seu sepultamento exemplares únicos de vestimentas, tecidos e formas variadas de produções imagéticas que dão um vislumbre da realidade dos contatos culturais que buscamos discutir a partir de interpretações iconológicas das representações presentes nesses têxteis, objetos e na forma que esse sepultamento foi feito [BARISITZ, 2017, p. 33-37 e 41; BOARDMAN, 2015; GOODY, 1996; HANSEN, 2012, p. 32; LIU, 2010, p. 9-11; NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY, 2002; WANG, 2022]. Com o intuito de analisar questões sobre sincretismos culturais que abordem produções imagéticas de influências chinesas e helenísticas, visamos assim fornecer uma perspectiva que lide com questões de contatos culturais e de ressignificações de símbolos, de forma a produzir uma visão que fuja do eurocentrismo e amplie a dimensão do protagonismo dos povos locais a serem lidados, sendo eles as populações presentes onde se localiza atualmente a província de Xinjiang, na China, ou seus arredores imediatos. Procuramos, assim, problematizar questões sobre os significados carregados dentro das produções imagéticas; como elas se assemelham ou se diferenciam de produções helenísticas próprias; como os aspectos culturais chineses e helenísticos dialogam entre si; e qual a importância que as sociedades locais Novos Estudos em Extremo Oriente 46 davam para os aspectos culturais helenísticos e chineses que faziam parte dessa possível realidade plural evidenciada em Xinjiang. O Homem de Yingpan O Homem de Yingpan é datado entre 206 A.E.C. e 420 E.C.. Ele foi encontrado em uma escavação em 1995, na denominada de Tumba 15, em Yingpan, Weili. Essa figura pertence ao acervo do Institutode Arqueologia de Xinjiang [NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY, 2002, p. 320]. Figuras 1 e 2: Homem de Yingpan, parte 1 e 2. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of Novos Estudos em Extremo Oriente 47 East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 320-321. Figura 3: Homem de Yingpan, parte 4. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 323. A túnica, que cobre seu corpo, reflete um estilo de túnica produzido no período e território do Império Kushan [YATSENKO, 2012, p. 46]. As representações são padronizadas em duplas ou individualmente, com as representações em duplas sendo espelhadas, isto é, sendo idênticas em características e posição, porém opostas direcionalmente, e com tanto às representações em duplas ou individuais se repetindo numa faixa horizontal inúmeras vezes. A maior parte das representações são figuras de guerreiros em postura de combate, trajando diferentes armamentos e em diferentes posições de batalha, com alguns em aparente posição de defesa, e outros de ataque. Sendo os guerreiros imberbes, demonstram sua aparente juventude [HURWIT, 2007, p. 48]. As capas ou mantos em uso por alguns dos guerreiros provavelmente são Novos Estudos em Extremo Oriente 48 clâmides, que “acabam enfatizando sua nudez”, dessa forma reforçando a deliberada exposição dos corpos nus dos guerreiros [PALAGIA, 2000, p. 185-186; HURWIT, 2007 p. 47]. As árvores representadas se assemelham muito com romãzeiras, e agem como uma espécie de linha de divisão entre todas as faixas horizontais de todos os outros tipos de figura. Segundo Jones [2009], as representações dessas romãzeiras seriam possivelmente de origem persa, e as representações de animais na túnica, sendo eles o touro e o bode, seriam derivados das artes com representações animais que já existiam na região da Ásia Central [JONES, 2009, 28-29]. Interpretação iconológica Como já salientado por autores como Jones, uma das posições tomadas por um dos grupos de guerreiros na túnica se assemelha muito com um mosaico do fim do quarto século A.E.C., encontrado na chamada "Casa do Dionísio”, em Pela. Esse mosaico apresenta uma cena de caça, provavelmente representando uma caçada empreendida por Alexandre, o Grande. As figuras na túnica que especificamente mais se assemelham com as desse mosaico são as dos guerreiros trajando um clâmide e brandindo uma lança, que se assemelham com a figura no mosaico que provavelmente representa o próprio Alexandre. Os dois caçadores presentes no mosaico também compartilham a caracterização imberbe presente em todos aqueles representados na túnica, que, como já exposto, em conjunto com o uso do clâmide e a nudez das figuras, podem todas serem formas de representação da juventude das figuras expostas [LEE, 2015, p. 40; PALAGIA, 2000, p. 185-186; JONES, 2009, p. 28-29; HURWIT, 2007, p. 47-48 e 53]. Figura 4: Mosaico em Pela, do fim do quarto século A.E.C., mostrando dois macedônios caçando um leão. Fonte: Pella Archaeological Museum. [Disponível em: . Acessado em: 10/04/2022] Novos Estudos em Extremo Oriente 49 Figuras 5 e 6: Recorte do Homem de Yingpan, parte 4. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 323./ Recorte do mosaico em Pela, do fim do quarto século A.E.C., mostrando dois macedônios caçando um leão. Fonte: Pella Archaeological Museum. [Disponível em: . Acessado em: 10/04/2022] A nudez presente tanto em todas as figuras da túnica quanto do mosaico também podem ser significadas como uma representação do chamada de “nu heroico”, que seria uma forma artística de demonstrar uma figura poderosa e exemplar dentro do imaginário grego: “O princípio básico da nudez heróica na arte Grega pode em qualquer caso ser declarado quase silogisticamente: deuses e heróis são normalmente representados nus, e mortais que desejam ser classificados entre os heróis e aqueles que foram de fato heroicizados (e.g., guerreiros que caíram em batalha) devem estar nus, também. Dessa forma, nus masculinos (particularmente aqueles envolvidos ou que já estão entrar em combate) são heróicos. Implicitamente, então, existem dois tipos de nudez heróica. Existe, primeiro, o tipo que heróis mitológicos como Héracles ou Teseu “vestem” porque eles são realmente heróis mitológicos - nudez é seu atributo. Existe, em segundo, o tipo de nudez que mortais vestem para imitar heróis específicos ou alegar um status heróico generalizado. Em qualquer caso, nudez é pensada como heróica porque ela revela o corpo ideal, jovem, poderoso como fonte de beleza e areté, que heróis possuem. E é heróico porque para entrar em competição ou combate completamente exposto, e, consequentemente, completamente vulnerável (ou quase completamente vulnerável, já que muitos guerreiros estão equipados com escudos, elmos, e capas que, voando sobre seus corpos, acabam enfatizando sua nudez) é para demonstrar um tipo especial de energia e bravura transcendente; o sucesso depende dos poderes físicos e areté de um indivíduo, ao invés de fatores externos Novos Estudos em Extremo Oriente 50 como armas ou armaduras.” [HURWIT, 2007, p. 46-47, tradução nossa] A definição do nu heróico, como o próprio Hurwit discorre, acaba não descrevendo todos os contextos possíveis nos quais representações de figuras nuas poderiam se apresentar dentro da arte grega. A nudez poderia ser uma forma de representar juventude, como já exposto acima; de reforçar a posição subalterna de uma figura dentro de sua sociedade; de expor a vulnerabilidade ou derrota de uma figura; ou até mesmo simplesmente como forma de diferenciação de múltiplas figuras dentro de uma obra [HURWIT, 2007, p. 52-57]. Dessa forma, o nu heroico se mantém como uma entre diversas possibilidades para a nudez masculina ser representada na arte grega. O nu heroico e a nudez como representação da juventude, porém, se destacam como as duas possibilidades que mais se encaixam nas representações dos guerreiros presentes na túnica. A nudez heróica, pelas posições de combate, de avanço ou recuo, em que os guerreiros são representados, e a nudez da juventude, pela condição imberbe de todos os guerreiros, e o uso do clâmide, outro possível indicador de juventude, por alguns deles. Além disso, diversos autores, como Jones, Sheng, Mair, Wang, Barber, e Hansen, que descrevem e analisam as imagens presentes na túnica, se referem aos guerreiros como “putti” ou “cherubim”, provavelmente considerando as proporções mais compactas que os corpos dos guerreiros dispõem como uma característica que os enquadra na definição desses deuses de aparência infantilizada, mais conhecidos dentro da tradição grega como Erotes (HALL, 1995, p. 136). No contexto grego, os Erotes eram retratados ocasionalmente como “elementos decorativos” em representações artísticas, participando de obras de contexto dionisíaco ou até mesmo em representações de caçada como os próprios caçadores, o que comparativamente se alinharia com as representações presentes na túnica. Eles também se mostravam como elementos decorativos em sarcófagos romanos, o que reforça o argumento da túnica ter sido produzida para o uso do Homem de Yingpan em sua sepultura, ao mesmotempo que também reforça essa caracterização dos guerreiros na túnica como Erotes. Esse fator, porém, seria uma possibilidade somente se a realidade cultural onde o Homem de Yingpan estava inserido abordasse a representação de Erotes como decorações funerárias de forma similar aos romanos, e também transformasse esse tipo de decoração como algo viável e adequado a ser representado num vestuário de um defunto, o que o diferenciaria nesse sentido em seu uso feito pelos romanos, mesmo que a abordagem geral fosse parecida [ZHANG, 2019, p. 58; JONES, 2009, p. 28-29; SHENG, 2010, p. 39-40; MAIR, 2016, p. 27; WANG, 2022, p. 12; BARBER, 2014, p. 38; HANSEN, 2012, p. 40-41; LEE, 2015, p. 166; AURENHAMMER, 2018, p. 163-165]. Alguns dos aspectos presentes nos guerreiros na túnica se opõem a caracterizações mais comuns dos Erotes na arte grega. A ausência de asas, Novos Estudos em Extremo Oriente 51 característica mais reconhecível dos Erotes em geral, bem como a aparência de uma musculatura bem desenvolvida, um ponto discordante da aparência infantil costumeira na caracterização dos Erotes, podem servir como pontos de discussão desse tema. Questões já abordadas, como o uso da nudez para caracterizações que procuram representar a juventude e/ou a heroicidade de homens ou deuses, bem como o uso do clâmide por algumas das figuras da túnica, que como já visto pode ser um indicador de juventude, porém de uma juventude mais ligada à jovens adultos do que a de crianças pequenas – os quais a representação dos Erotes normalmente se espelha – são todos fatores dessa discussão que mostram que a caracterização dos guerreiros não é tão simples quanto essa perspectiva trazida por esses inúmeros autores se faria pensar [HALL, 1995, p. 136; LEE, 2015, p. 40; HURWIT, 2007, p. 46-47 e 53]. Além da túnica e de suas representações, outros objetos ou vestuários presentes na sepultura do Homem de Yingpan podem realçar muitas considerações sobre como uma diversidade cultural está aparente nessa sepultura, e o que essa diversidade cultural pode nos demonstrar. Nas práticas funerárias feitas para o sepultamento do Homem de Yingpan, por exemplo, é aparente a similaridade das técnicas tomadas para o sepultamento do corpo com as estipulações estabelecidas para realizar um sepultamento segundo a tradição confuciana, a respeito de cobrir o rosto, enterrar o corpo completamente vestido, cobrir o corpo por inteiro em um manto de seda, entre muitas outras características mais específicas. Além disso, crenças espirituais chinesas também são possivelmente evidenciadas em alguns dos outros objetos da sepultura. Padrões ou estilos decorativos no próprio caixão são vistos como possíveis símbolos que remetem ao uso de jade nos processos de sepultamento no período da Dinastia Han, principalmente pela nobreza [WANG, 2022, p. 10]. Assim o “padrão no caixão do Homem de Yingpan carrega o significado simbólico de preservar o corpo eternamente para que assim sua alma e espírito alcancem os céus” [WANG, 2022, p. 10]. Um brocado encontrado junto com o Homem de Yingpan também demonstra uma influência chinesa, apresentando dois tipos de logogramas chineses que vão se repetindo por sua extensão, que provavelmente carregavam significados que remetiam a desejos de saúde que o Homem de Yingpan possuía enquanto vivo. Um travesseiro também presente na sepultura possui as figuras de algumas criaturas mitológicas chinesas, como o Tigre Branco do oeste, o Dragão Azul do leste, a Tartaruga Negra do norte e o Pássaro Vermelho do sul, que compunham as quatro criaturas que são representados como os guardiões dos quatro pontos cardeais segundo a tradição chinesa, porém com essa representação no travesseiro substituindo a Tartaruga Negra do norte por um grifo, o que pode também demonstrar uma modificação que ocorreu devido a esses contatos proporcionados pelas Rotas da Seda [WANG, 2022, p. 9-12]. Como já observado durante a análise iconográfica, Yatsenko discorre sobre o estilo da túnica do Homem de Yingpan se assemelhar com o estilo de túnicas usadas pelos membros do Império Kushan, que existiu desde o primeiro século Novos Estudos em Extremo Oriente 52 E.C. até o quarto século E.C.. Testes de datação da sepultura marcam uma datação do terceiro ao quarto século E.C., formando assim uma interpolação temporal entre essas duas abordagens [WANG, 2022, p. 4]. Porém, de forma geral, a questão sobre as origens do Homem de Yingpan ainda é muito complexa, não possuindo nenhuma perspectiva amplamente aceita sobre o assunto. Assim sendo, podemos explorar algumas dessas perspectivas: “A opulência e boa qualidade dos objetos enterrados com o Homem de Yingpan indicam que ele deveria ter tido um alto status social antes de sua morte. Dada a importância da cidade de Yingpan, como um centro comercial nas Rotas da Seda, os escavadores que descobriram o Homem de Yingpan sugeriram que ele era um rico mercador do Ocidente. Outros propuseram que o Homem de Yingpan possa ter sido um mercador sogdiano, já que os sogdianos (um povo de língua iraniano cuja terra se estabelecia próxima de Samarcanda, no que hoje é o Uzbequistão) foram os comerciantes mais ricos ao longo das rotas. [...] a comparação do sepultamento do Homem de Yingpan com outros sepultamentos contemporâneos ao seu tempo em Gansu também sugerem que o Homem de Yingpan era possivelmente um oficial militar do governo da China Central. Mais evidências de apoio vem da braçadeira bordada que foi enterrada com o Homem de Yingpan, já que braçadeiras coloridas podem ter sido usadas por soldados, como proteção de forças malignas em Xinjiang na antiguidade. Uma explicação adicional seria que o Homem de Yingpan era um nobre ou até mesmo um rei de um estado próximo chamado de Shan (também conhecido como Moshan), e a antiga cidade de Yingpan foi sugerida como a possível cidade capital deste estado. Uma explicação alternativa é que o Homem de Yingpan fazia parte de uma família nobre local que foi deslocada da Báctria para o sul da Bacia do Tarim depois do desencadeamento de conflitos no Império Kushan no final do segundo século E.C., devido à popularidade das artes de Kushan nessa área durante as Dinastias Han e Jin. A evidência isotópica apresentada aqui [...] indica que durante seus últimos três ou quatro anos de vida, o Homem de Yingpan não era um viajante ou mercador nas Rotas da Seda, pelo menos durante esse período de sua vida. Assim sendo, o Homem de Yingpan aparenta ter sido um morador local, possivelmente um oficial governamental ou da realeza dessa região da Bacia do Tarim, talvez do estado próximo de Shan. Isso pode explicar o porquê ele foi enterrado no cemitério de Yingpan, por se enquadrar como capital desse antigo estado.” [WANG, 2022, p. 12-13, tradução nossa] Considerações Finais A sepultura do Homem de Yingpan representa um dos achados mais únicos e extraordinários de contatos culturais que podem ser observados através de representações artísticas dentro do contexto de um único achado arqueológico das Rotas da Seda na Antiguidade. Algumas das representações presentes na Novos Estudos em Extremo Oriente 53 túnica do Homem de Yingpan apresentam certa similaridade com exemplos de produções gregas e romanas existentes, porém fica salientado que a diferenciação presente reforça uma singularidade dos significados e motivações por trás da produção deste achado de Xinjiang. Destacando, também, o contato direto apresentado na sepultura de produções vindas de uma esfera cultural chinesa com essas produções assemelhadas a um contexto helenístico, podemos considerar que esses diferentes tipos de produções imagéticas não eram, pelo menos dentro desse achado específico, vistas como antagônicas, sendo esse contato direto viabilizado por um processo de sincretismo ou adaptação existente do contexto cultural presente em Xinjiang à realidade de contatos culturais proporcionada pelasRotas da Seda. Referências Cristian de Silveira é Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atualmente é graduando em Bacharelado em História pela mesma instituição. Este artigo foi produzido a partir de um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Curso para a graduação de licenciatura em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2022. AURENHAMMER, Maria. Sculpture in Roman Asia Minor. 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Bem como, explicar rapidamente como se deu o processo de redemocratização em ambos, dessa forma procuramos destacar figuras femininas que se fizeram relevantes nesse período onde o direito à liberdade da livre expressão, por exemplo, foram exterminados com os Atos Inconstitucionais no Brasil e na Coreia do Sul com os movimentos de contestação. Para entendermos os processos ditatoriais é relevante destacar que estes são formados em sua essência por conflitos políticos autoritários, sua manutenção é mantida pela violência, são governos ilegítimos e de exceção. A partir disso, vale ressaltar que sua principal característica é a centralização do poder, mantendo este nas mãos de um indivíduo ou de um grupo com o monopólio deste, com o objetivo de manter o controle utiliza como de meio de restrição de informações, a censura nos meios de comunicação, como por exemplo, a empresa e em alguns casos os outros poderes compostos pelo Estado como o legislativo e o judiciário, mantendo constantemente essa divisão extinta, somente havendo o ditador com o controle do Estado. Nesse sentido, busca-se analisar como se deu esses processos na Coreia do Sul e no Brasil no século XX. No caso do Brasil, será abordado o papel do feminino no processo ditatorial brasileiro e suas principais características, já no caso Sul Coreano, iremos apresentar como a figura feminina no audiovisual é apresentado nos governos autoritários, bem como analisar o K-drama Reply 1988, onde se mostra tal característica. Além disso, a análise sobre o processo de redemocratização faz-se necessário para se compreender a pós- ditadura e como em cada país essa execução se deu. Novos Estudos em Extremo Oriente 57 A ditadura sul coreana e a perspectiva do audiovisual: o feminino em questão A história da Coreia do Sul no século XX é carregada de processos históricos e marcantes. Começando com o fim da última Dinastia Coreana – Joseon (1392-1910) – com a anexação da Península Coreana ao Japão, começando assim o período de Ocupação Japonesa (1910-1945). Logo após, o mundo passava pelo período de pós Segunda Guerra Mundial, e os coreanos também estavam em conflito, que eclodiu na Guerra da Coreia (1950-1953), com a divisão peninsular em Coreia do Norte – República Popular Democrática da Coreia (RPDC) – e Coreia do Sul – República da Coreia – com ideologias políticas distintas, por conta do cenário de Guerra Fria. E este período de conflitos ideológicos que os movimentos sociais ficaram em evidência na Coreia do Sul, assim como os regimes autoritários. Em 1961, começa com o golpe de estado de 16 de Maio, pondo fim a 2° República da Coreia – que durou de 1961 a 1963. Duranteo período de 1963 a 1972, houve a ditadura militar de Park Chung-hee (1961-1979). Esse foi um período de fragilidades e tentativas de reestruturação da Coreia do Sul, no pós divisão da península no Norte e Sul, que acarretou, em mudanças e débitos industriais, que afetaram a economia do país e politicamente – com a ameaça comunista. Assim como afirma Quý: “[...] o regime de Park Chung-hee, no entanto, foi também o pior período sob o aspecto social. A ditadura militar (1961-1987) fez toda a sociedade sul-coreana apenas viver e trabalhar de acordo com apenas três regras, como “anticomunista”, “governo ditatorial” e “economia desenvolvimentista” [...] Durante os anos de 1960 até 1970, as condições de vida da força de trabalho que migraram de setores agrícolas para as cidades ou áreas industriais foram extremamente cheio de dificuldades [...].” (QUÝ, 2012, p. 6). De acordo com a citação, esse governo e as práticas de repressão contra os sul-coreanos permaneceram durante um bom tempo. Porém, não foi só com a liderança de Park Chung Hee, que existiram tais ações, nos próximos também ocorreram. Nesse sentido, foi a partir da década de 80 que os regimes ditatoriais começaram a ficar intensos, a exemplo temos o Massacre de Gwangju, para demonstrar uma das consequências que esse regime acarretou. Segundo Mi, “depois que o presidente Park Chung-hee foi assassinado em 1979, a Coreia desfrutou de um breve período de democratização [...] O general Chun Doo-hwan, no entanto, frustrou esta esperança de democracia ao dar um golpe militar” [MI, 2005, p. 265]. General este que massacrou bastante civis no massacre mencionado acima, tornando seu governo uma continuação de mais um período ditatorial. E foi a partir desse novo regime militar, que o papel dos movimentos de contestação estudantil entrou em vigor entre os coreanos. E é nesse pano de fundo que a temática irá se voltar, nesse aspecto, a década de 80 – tempo de redemocratização na Coreia do Sul – também passou por um Novos Estudos em Extremo Oriente 58 golpe militar, assim como nos anos anteriores. Assim como governo de Chung-hee, Chun Doo-hwan continuou com a prática dos chaebols – conglomerados empresariais coreanos – porém, de acordo com Heo et al. “[...] a economia internacional ambiental não era favorável às exportações coreanas [...] para enfrentar esses problemas, o governo [...] adotou medidas políticas agressivas para a desenvolver a economia [...]” (HEO et al., 2008, p.8). O que fez com que esse governo, procurasse novas formas para lidar com o aspecto econômico – algo crucial no comando de um país – além do quadro internacional com outros países. Ademais, mesmo com a economia tendo melhoras, no aspecto social, ainda continuava a forte repressão que o governo detinha sobre as pessoas. Em 1987 – um ano antes das Olimpíadas de Verão que seriam sediadas em Seul - houve um incidente que fez mudar os cursos do governo de Chun, que foi: “[...] os protestos pela democracia aumentaram devido o abuso dos direitos humanos e o regime autoritário do governo. O movimento culminou na morte acidental de um estudante universitário, Park Jong-Chul, que foi causado por uma surra policial. Milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo de Chun e pedir uma eleição direta para o próximo presidente [...] 29 de junho de 1987, o governo fez um anúncio para ceder para a transição para a democracia, que incluiu: 1) uma eleição direta do presidente; 2) garantia dos direitos humanos; 3) garantias de liberdade de expressão; 4) autonomia local; e 5) garantir a liberdade de partidos políticos.” (HEO et al., 2008 p. 11). Nessa corrida presidencial que estava ocorrendo, a vitória foi de Roh Tae-woo – que também teve seu governo questionado por seu apoio a Chun Doo-hwan e pela sua formação militar – dando assim o cenário do k-drama que será apresentado como análise de gênero nos movimentos populares a favor da democratização. Dito isto, Reply 1988 é uma telenovela sul-coreana do ano de 2015 e, produzida pela CJ E&M e distribuída pela tvN. É uma telenovela ambientada nos anos de 1988, e que mostra a vida de cinco amigos e suas famílias e também, como foram a década de 80 na Coreia do Sul. Em 1988, ano da Olimpíadas de Seul uma das personagens – Sung Deok-sun (Hyeri) – é escolhida para ser piquete e representar um país na Cerimônia de abertura, sua irmã Sung Bo-ra (Ryu Hye-young) – a que será parte importante desta análise – porém, alerta sobre a realidade das olimpíadas e os planos de governo, assim como afirma Chade em “Seul, 15% da população foi violentamente expulsa e 48 mil edifícios foram demolidos em 1988 durante a preparação dos Jogos Olímpicos. A especulação imobiliária aumentou em mais de 20% o valor dos apartamentos e em mais de 27% o de terrenos.” (CHADE, 2010, p. 2). Por meio de outras falas, Sung Bo-ra obtém papel importante nos primeiros episódios que retratam parte do que foram os movimentos de contestação dos direitos civis na Coreia do Sul. Ela além de tudo é estudante de Matemática da SNU (Seoul National University), e se encaixa em uma das categorias que mais Novos Estudos em Extremo Oriente 59 faziam parte dos protestos, a categoria estudantil. Nesse k-drama é possível ver como a relação de gênero, como Joan Scott, afirma: “[...] o que é talvez mais importante, "gênero" era um termo proposto por aquelas que sustentavam que a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas disciplinares”. (SCOTT, 1995, p. 73). Diante disso, a escolha de retratar o papel da mulher nesse movimento de ditadura e redemocratização é algo essencial como perspectiva ampliada, assim como, no aspecto do audiovisual. Embora esta proposta seja abordada como uma jovem que busca sempre estar atenta a realidade política em que vive, sendo assim, ao usar produtos essencialmente coreanos – como roupas e sapatos – e ler sempre livros de conteúdo político-crítico a fizeram se tornar parte dos protestos, algo que sua família é contra. Entretanto, mesmo assim, ela continua tendo seu senso político forte – e de personalidade – demonstra ser uma figura feminina de poder nesse cenário político conturbado, até conseguir se formar em outra faculdade, em Direito – desta vez – e sendo uma pessoa política importante durante o k-drama. A ditadura militar brasileira e as mulheres No Brasil, o golpe de Estado de 1964 que teve seu início em 31 de março a 1º de abril do mesmo ano foi o primeiro passo dos militares para se perdurar no poder, mantendo este sem dúvida com a violência, para Fábio José Cavalcanti de Queiroz “o golpe de Estado não significa somente a modelagem de um novo bloco de poder, mas de uma nova forma de dominação política, assentada sobre as ruínas da classe trabalhadora.” (QUEIROZ, 2015, p. 113). Em vista disso, os meios de dominação exercidos pela nova ordem são ilegítimos e quando nos referimos ao golpe, é entendível que se tenha em mente que essa articulação se expande de forma ilegal, derrubando governos constitucionais e trazendo em vigência um meio de controle que se constitui em atrito com a constitucionalidade. Desse modo, todo o resultado desse governo é de caráter autoritário, e por se constituírem de forma ilícita utilizam de meios como a tortura - um dos vários aparatos da violência – para manter a exclusividade do regime. Após o golpe, a ditadura militar brasileira permanece em 21 anos, que foram marcados por diversas irregularidades nos meios constitucionais e com inúmeras denúncias de ataques à integridade dos indivíduos, não prevalecendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso, não é incomum que as Forças Armadas sejam os detentores do poder neste cenário, pois são esses que possui o controle sobre grande parte do armamento bélico e de indivíduos patriotas que juraram sacrificar suas próprias vidas a pátria amada, como podemos destacar de um recorte do juramentoà bandeira que diz “na esfera das minhas atribuições, a dedicar-me inteiramente aos interesses da Pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei, com o sacrifício da própria vida." (BRASIL, 1996). Diante disso, o patriotismo é um elemento importante para se construir um Estado autoritário e dar continuidade e legitimidade a um processo de caráter ilegal. Novos Estudos em Extremo Oriente 60 Inerente aos ideais produzidos aos longos dos anos, surge na Ditadura a Doutrina de Segurança Nacional que foi uma política para garantir os interesses nacionais, esta “visava garantir a conquista ou manutenção dos objetos nacionais, tendo diretrizes governamentais com contra ofensivas capazes de superar os óbices.” (CRESTANI, 2011, p. 4). Criada para assegurar sua ilegitimidade como autoridade, realiza uma política dos “inimigos internos”, esse sistema é bem mais complexo do que se parece, pois este faz com que se crie no imaginário do outro a vigilância do próprio indivíduo e de terceiros, provocando a normatização da autoridade imposta em todos os seus 21 anos de governo. Produz-se um imaginário que precisa enquadrar a sociedade e as instituições em um molde, e se por acaso existisse inconsistências, estas se encontram fora dos padrões, viram automaticamente inimigos internos do país. Os discursos ideológicos tornam-se comuns, se impregnam em todas as camadas sociais e criam a normalização para se manterem no poder, como resultado se legitimam as ações de violência. Em vista disso, a Doutrina Nacional insere o Sistema Nacional de Informações (SNI), que segundo Ana Lagôa “não é meramente um aparelho repressivo sofisticado, no sentido policial da palavra. Ele faz parte de uma estratégia global." (LAGÔA, 1983, p. 11). A formação do imaginário do cidadão comum que há um inimigo interno e que pode ser o seu vizinho, por exemplo, cria um estado de atenção simultânea. Essas e outras questões são meios comuns de processos autoritários, este prevalece no domínio da força seja bélica ou de homens que são comungados com estes ideais. Toda a trajetória da ditadura militar no Brasil é marcada por incontáveis casos de torturas – principalmente físicas – desde o golpe de Estado até a queda de João Figueiredo, último presidente da ditadura. Fica evidente que no processo de 1964 a 1985, onde os seis presidentes gozaram de prerrogativas para serem eleitos sem a participação do povo, pode se afirmar que, a censura, violência, centralização do poder, a cassação dos direitos políticos e a ilegitimidade são características intrínsecas desse processo ditatorial, utilizando cada uma destas para se legitimar e permanece no poder. Sendo assim, o feminino é exposto a um cenário onde as regras sociais são construídas historicamente e vivenciadas desde a pré história, que consequentemente ocorrem em looping e são novamente remodeladas as crenças, os hábitos e as regras do que o feminino pode ou não cumprir. No período ditatorial as figuras femininas e suas representações são rejeitadas logo a desqualificação da mulher que lutava contra a ditadura no Brasil é vista como “desviante”, as relações entre os gêneros mesmo nos meios mais alternativos, como no grupos militantes, são evidenciados níveis hierárquicos e como resultado a desigualdade de um grupo sobrevalece o outro, dessa forma o autor Marcus Aurélio Taborda de Oliveira afirma que, “Homens e mulheres esqueciam que a luta pela igualdade passa pelo reconhecimento das diferenças.” (DE OLIVEIRA, 2004, p. 8). Nesse sentido, o estudo do papel feminino é importante no processo de redemocratização onde as militantes tiveram um papel essencial, estando à frente nas “Diretas já”, que infelizmente não ocorreu de forma planejada, pois a Novos Estudos em Extremo Oriente 61 proposta foi rejeitada. Além disso tudo, as mulheres lutam diariamente com cobranças sociais e preconceitos advindos de um processo que foi formado no meio do machismo e de crenças limitantes. Assim como afirma a autora, "como na época colonial de que falava Spivak, sobre o corpo das mulheres são consumidas batalhas de poder e de controle que esquecem o desafio transformador da sociedade que o feminismo colocou”. Nesse sentido, não podemos romantizar esse movimento de redemocratização, pois estratégias foram criadas para camuflar a oposição entre as classes, como por exemplo, a expressão “transição democrática” que o ex-presidente Ernesto Geisel afirmou que tal transição ocorreria uma "distensão lenta, gradual e segura”. Considerações finais Conclui-se assim, que os processos ditatoriais analisados de formas sucintas, são caracterizados em sua maioria como violentos e, como exposto ao longo do texto, foram erguidos de forma inconstitucional. Como são governos autoritários e de exceção eles possuem uma ideologia muito marcada em cima do anticomunismo, e de um plano de governo desenvolvimentista, as figuras destacadas do feminino foram cruciais nos processos sociais, e com o decorrer dos anos essa movimentação acaba influenciando no declínio do governo ditatorial. Dessa forma, podemos afirmar que toda a elaboração do golpe até a redemocratização foram atividades exercidas por diferentes sujeitos em suas devidas proporções, e a mulher que ousou lutar contra a ditadura sofreu socialmente e fisicamente do Estado. Assim, como no âmbito realístico – no que tange as ditaturas por si mesmas – e no ficcional, é possível ver que as mulheres, e a relação de gênero é algo de destaque no decorrer dos processos citados ao longo do texto. Utilizar a categoria de gênero, como ferramenta de análise, traz a tona a questão da participação feminina, e quebra o estereótipo – principalmente o asiático, da mulher frágil e que sempre necessita de ajuda – imposto sobre a mulher. Referências Eduarda Christine Souza Pucci e Vitória D’Oliveira Abrantes são discentes do curso de Licenciatura em História, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. BRASIL. Decreto-lei nº nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966. Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lex: coletânea de legislação: edição federal, 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d57654.htm. CHADE, Jamil. Olimpíada e Copa trazem prejuízos sociais. 2010. Disponível em: http://memoriadasolimpiadas.rb.gov.br/jspui/bitstream/123456789/228/1/ESTAD%c3%83O_2010_03_05%20_Olimp%c3%adada_Copa_preju%c3%adzo%20social.pdf Novos Estudos em Extremo Oriente 62 CRESTANI, L. de À. 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Novos Estudos em Extremo Oriente é mais um feliz encontro de pesquisadores que continuamente encaram o desafio de abrir a capoeira dos estudos asiáticos no Brasil – usando de um termo proposital, abrir essa clareira no meio de uma mata fechada de ignorância, mas também, usar de um jogo de luta para enfrentar a obtusidade, o preconceito, a xenofobia e o racismo, proporcionando as vias – o Dao que os chineses tanto falavam – para o reencontro de nossa civilização com suas raízes asiáticas, e para os novos momentos que virão. Cumpre então apresentar os temas que compõe esse volume, numa apresentação organizada de acordo com os domínios culturais representados [e que estão em ordem diversa da do índice, organizado sistematicamente pelos nomes autorais]. O mundo sinosférico traz importantes contribuições que vão da cultura tradicional às perspectivas atuais para a civilização sínica. Em ‘Quem eu busco quando venero meus ancestrais? Um ensaio sobre a ancestralidade na China’, o presente autor apresenta os problemas ligados a formação do pensamento sobre o culto aos ancestrais na China antiga e os problemas que a retomada dessas práticas constituem na contemporaneidade; já ‘A sepultura do homem de Yingpan: contatos culturais helenísticos e chineses?’ por Cristian de Silveira traz uma empolgante pesquisa sobre os contatos interculturais na antiguidade, a partir do exame de uma tumba chinesa que apresenta diversos motivos artísticos gregos; noutro sentido, mas ligado à cultura tradicional, ‘A China e o chá: ensaio sobre o desenvolvimento da bebida na cultura e nas práticas alimentares chinesas’ por Felipe Ruzene, literalmente nos brinda com uma apresentação delicada e cuidadosa sobre a arte do serviço do chá na China, sua ritualidade e práticas comensais; e ainda, temos ‘A obra Xunzi como fonte de pesquisa da história da filosofia chinesa antiga’ por Matheus Oliva da Costa, uma pesquisa inovadora sobre o autor confucionista Xunzi, do século 4 AEC, e pouquíssimo conhecido do público brasileiro, e cuja obra vem sendo gradativamente apresentada ao nosso público por esse estudioso. Novos Estudos em Extremo Oriente 7 Os enfrentamentos históricos e culturais do mundo chinês, principalmente no período Ming e Qing, são representados por três textos que dialogam intimamente entre si, ‘Os jesuítas e o uso da retórica: o exemplo de Matteo Ricci na china’ por Renan Morim Pastor; ‘As crises que originaram as migrações e a diáspora chinesa em meados do século xix’ por Maria Teresa Lopes da Silva e ‘Notas históricas sobre o governo e a sociedade chinesa durante o primeiro século da dinastia Qing’ por Renata Ary. Perfazendo o percurso da história imperial mais recente da China, os ensaios cobrem as questões da chegada dos ocidentais no período moderno, e de como os jesuítas abriram caminho nessas relações Ocidente-Oriente; em seguida, como as crises endógenas na China impulsionaram o movimento inverso, levando milhares de chineses a migrarem e se espalharem pelo mundo durante o período Qing, uma longa época dinástica que alternou momentos de poder imenso com uma decadência inexorável e fatal, que culminaria com o fim do império chinês e ascensão da república em 1912. O período mais recente da história chinesa é contemplado pelos ensaios ‘Os impactos bilaterais da belt and road initiative nas relações sino-africanas do século xxi’ por Cassiano Schwantes Correa e Teodora Maicá Soares e ‘Um histórico de rusgas e os esforços recentes de pacificação nas relações bilaterais sino-vaticanas’ por Felipe Vidal Benvenuto Alberto. No primeiro, podemos conhecer um pouco mais sobre as recentes ações do governo chinês no continente africano, promovendo uma revolução econômica e os impactos disso para o mundo globalizado; já Felipe Vidal nos apresenta um assunto muito pouco estudado, as relações entre o Vaticano e o governo chinês da RPC. O tema tem sido usualmente explorado pela disseminação de notícias falsas e preconceitos, sendo merecedor de uma análise mais lúcida e consciente, objetivo que o autor cumpre em seu ensaio ao nos trazer informações atualizadas sobre a questão. Passando ao domínio da cultura nipônica, ‘Natsume Soseki em Kokoro (“Coração”): a identidade como elemento constitutivo da modernização japonesa’ por Levi Yoriyaz, nos apresenta uma instigante análise do fenômeno de desenvolvimento do Japão moderno por meio de um romance, construindo uma perspectiva literária rica. No âmbito da cultura tradicional, ‘A lenda das raposas japonesas na sociedade da era Edo’ (1603-1868) por Olívia Nogueira Flausino e Juliana Bastos Marques e ‘MA: espaços de transição e respiro nas artes japonesas’ por Victor Vidal apresentam-nos aspectos próprios das artes e da literatura japonesas, cujas dimensões estão sendo cada vez mais exploradas academicamente e pela própria expansão de um público leitor universal. As relações do Japão com o Ocidente, em um período mais recente da história, são discutidas em ‘O processo de rememoração da presença portuguesa no Japão no século xvi’ por Willian Carlos Fassuci Larini e ‘Comércio transpacífico: o Japão como importador de produtos de produtos minerais do Brasil’ por Matheus Henrique da Silva Alcântara e José Otávio Aguiar. Enquanto W. Larini recupera a memória japonesa sobre a presença lusitana no país, M. Alcântara Novos Estudos em Extremo Oriente 8 e J. Aguiar trazem um breve e importante estudo sobre as pouco conhecidas relações comerciais entre Brasil e Japão antes da segunda guerra mundial. Um campo de pesquisa que tem se desenvolvido bastante no Brasil são os estudos coreanos, cada vez mais representados nos eventos sobre história e culturas asiáticas. Essa produção tem subido rapidamente em quantidade e qualidade, e se faz presente nesse volume. Inicialmente, ela contemplada pelos ensaios em política e economia recentes, como é o caso de ‘A indústria de microeletrônica como paradigma do desenvolvimento tecnológico da Coreia do sul’ por Alexandre Black de Albuquerque e ‘Processos industriais e históricos no leste asiático: uma comparação entre China, Coreia do sul e Japão (1950-1980) por Eduarda Christine Souza Pucci, que apresenta um quadro comparativo nos desenvolvimento industrial das potencias asiáticas, suas peculiaridades e diferenças. Já ‘Igualdade de gênero e democracia: a Coreia do sul e o movimento feminino’ por Amanda de Morais Silva e ‘Gênero e regimes ditatoriais: o caso comparado entre Brasil e Coreia do sul’ por Eduarda C. S. Pucci e Vitória D`Oliveira Abrantes apresentam dois impactantes estudos sobre os estudos de gênero na Coreia, mostrando os desafios para o feminino dentro dessa cultura tradicional; indo além, traça-se um paralelo com o caso brasileiro, em um ensaio provocativo e que nos coloca diante de reflexões importantes e necessárias. Fechando o quadro dos estudos sobre Coreia, ‘Hangul (한글): breve análise sobre a composição do alfabeto coreano’ por Mayara Bassanelli e Felipe Ruzene perfaz uma introdução ao sistema de escrita único dessa civilização; e ‘Ecos de uma independência não conquistada: temáticas na literatura coreana do século xx’ por Suéllen Gentil e Alexsandro Pizziolo trazem uma profunda e sensível análise da cultura coreana atual pelo olhar poético, provendo incluso uma tradução inédita e reveladora. O último domínio contemplado é o da Ásia central e da Índia. ‘Imbricações entre história indiana e cultura hindu: o caso literárioSciences Information Review vol. 6 (no. 1), 2012. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/51176128.pdf SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. 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Inicialmente na Inglaterra e posteriormente espalhando-se por outros países da Europa, as ideais e as atividades – mesmo que modificadas – ganharam notoriedade mundial com o passar dos anos, com a nova forma de dinâmica econômica. Houve assim, segundo Lima e Neto (p.103, 2017), “uma transformação ampla e profunda na sociedade, em que a produção deixou de ser agrária e de manufatura para se transformar numa economia industrial [...]”. Neste trabalho, irá ser analisado como a Revolução que inicialmente começa na Europa, chega nos países asiáticos e como eles enfrentaram essas mudanças que o ocidente já havia iniciado em conjuntura com a História que esses países foram construindo com tempo. O período da década de 50 foi definido por grandes eventos em alguns países do Leste Asiático. Enquanto o Japão se recuperava de sua derrota e duas bombas atômicas, na Península Coreana, havia uma guerra começando que envolvia fatores políticos e territoriais. Já na China, uma revolução se instaurava entre os chineses. Tais fatores entre os três países acarretaram em grandes transformações. Com base nisso, a escolha desses três países está refletida nas suas ações no mundo contemporâneo e como seus processo de industrialização aos poucos foi ganhando espaço. Nesse momento de narrativas políticas, China, Japão e Coreia do Sul, após eventos de guerras e conflitos, iniciam uma reestruturação de suas nações, afim de acompanhar o mercado internacional e se inserir como possíveis atores, no que se refere aos processos industriais. Este trabalho tem como objetivo analisar e discutir como se desenvolve a industrialização realizada pela China, Coreia do Sul e Japão, buscando identificar se há semelhanças ou divergências em seus processos industriais. Ademais, pretende-se também compreender se há alguma diferença no modo de trabalho que se iniciou na Inglaterra, que apesar do contexto mundial de conflito ideológico entre duas potências – em uma situação de bipolaridade entre capitalismo e socialismo, representados pelos Estados Unidos e União Soviética (URSS) – conseguiram desenvolver um projeto industrial para cada Novos Estudos em Extremo Oriente 64 país. Embora que influenciasse ideologicamente, não impediu o crescimento dos países no ramo industrial, que possui traços difusos na economia mundial. China, Coreia do sul e Japão: uma breve análise comparada da industrialização dos países e sua atuação na economia A escolha de iniciar a análise na década de 1950 ocorre, pois, é nesse período que o mundo está sobre os efeitos da Guerra Fria. E os países asiáticos, como o Japão, estão se recuperando das consequências da Segunda Guerra Mundial, com uma nova proposta de industrialização, com ajuda dos Estados Unidos, enquanto na Península Coreana, os ânimos estão voltados para uma situação de Guerra entre o Norte e Sul. Já entre os Chineses, a Revolução Chinesa em 1949, já começava a transformar a China – com a Proclamação da República Popular Chinesa. Mao Tsé-Tung (1893-1976), líder da revolução, iniciava o Primeiro Plano Quinquenal (1953-1957) – e após 1 ano, a China irá instituir o Grande Salto Adiante (1958-1960) – afim de tentar recuperar a situação do país no ramo econômico, segundo Xue et al. apud Shu Sheng (p.21, 2012), já em 1952 o valor de produção industrial da China aumenta em 145%. Enquanto isso, na Península Coreana, após o fim da ocupação Japonesa (1910-1945) os coreanos tiveram mais uma tomada de território, só que dessa vez pela URSS e China ao norte e pelos Estados Unidos ao sul, com sua divisão no paralelo 38 – lugar este, que futuramente será ocupado pela DMZ (Zona Desmilitarizada). O resultado disso, foi a Guerra da Coreia, um dos conflitos externos da Guerra Fria – conflito ideológico entre duas potências, em uma situação de bipolaridade entre capitalismo e socialismo, representados pelos Estados Unidos e União Soviética (URSS). No momento em que a esse conflito coreano gerava grandes consequências, de acordo com Senhoras e Ferreira (2013, p.134) “[...] um armistício foi assinado, embora nunca tenha surgido assinatura de acordo de paz, pois nenhuma das Coreias reconhece a outra como país”. No fator desenvolvimentista coreano, o Japão em seu período de ocupação na Coreia aplicou o que vai ser futuramente, as bases para a industrialização. Segundo Kiely (1998, p.96), no período de 1967-72, cerca de 7 milhões de coreanos deixaram os campos e foram para as cidades em busca de emprego no setor industrial. Antes de ser um dos países a adotar o modelo industrial EOI (Industrialização orientada para exportações), a estratégia empreendida foi a de ISI (Industrialização por substituição de importações), conforme Mukherjee, o sistema ISI (Industrialização por substituição de importações, tende a considerar a produção de bens previamente importados, para o mercado interno. Já no sistema EOI (Industrialização orientada para exportações) a produção de bens manufaturados é voltada para o mercado externo. (p.2, 2012) No Japão, seu projeto industrial e reestruturação da economia, no pós Segunda Guerra Mundial contou inicialmente com a presença dos Estados Unidos com a desmantelação das zaibatsu – conglomerados econômicos controlados por grandes famílias japonesas – e segundo Moura (p.104, 2021), com o apoio de agências como: Novos Estudos em Extremo Oriente 65 “[...] o Ministério do Comércio Internacional e Indústria (Ministry of International Trade and Industry ou MITI), principal braço de planejamento do governo e responsável por reunir as elites empresariais em torno do projeto de desenvolvimento nacional estabelecido originalmente por Shigeru Yoshida e pelo Partido Democrático Liberal (PLD) a partir dos anos 1950, fomentando uma estrutura de gigantes conglomerados industriais [...]” Sendo assim, a partir de outras estratégias, basicamente o Japão em conformidade com o MITI – criado em 1949 – e uma nova Constituição, o Estado Japonês se desenvolve na indústria pesada e, com o passar das décadas, vai diversificando seu mercado, afim de atender a tendência comercial. O crescimento econômico japonês – conhecido também como o milagre japonês – ficou nos índices de uma média anual de 7% na década de 50, para a virada de década – no período de 1959 a 1963 – obtém um aumento de 10,9% na questão econômica do mundo capitalista (Tsuru, 1993, p.67) conforme Kiely (1998, p.35). E mesmo com a crise do Petróleo de 1973 a economia japonesa continua em aumento. Nesse momento, o Japão além da indústria pesada, também estava no mercado de automóveis, pois, segundo Batista (p.29,2014), o “[...]toyotismo, foi concebido para eliminar absolutamente o desperdício e superar o modelo de produção em massa estadunidense”. E esse modo de trabalho fez com o Japão conseguisse uma produção em que o operário trabalhasse em equipe e prezasse pela qualidade do produto. Porém, o rápido desenvolvimento industrial gerou consequências e elas foram em relação ao meio ambiente. Assim como iremos perceber nos modelos industriais seguintes, no que tange a Coreia do Sul e a China. Os três países apresentam uma proporção de crescimento, a partir da década de 60, juntamente com os Tigres Asiáticos, momento este em que seus projetos industriais estão em processo de consolidação para contribuir com o aumento e participação do leste asiático no mercado econômico internacional. Assim como no Japão, o modelo industrial baseado na tendência de mercado também foi uma escolha do governo sul coreano. Kiely (p.98- 99, 1998), afirma que, por conta da desvalorização da moeda coreana – o Won – na fase temporal que: “Em 1963 e 1971-72 tiveram o efeito de tornar as exportações da Coreia pelo menos potencialmente mais baratas, e, portanto, mais competitivo, no mercado mundial [...] o Estado continuou a desempenhar um papel ativo na promoção da indústria do desenvolvimento. [...] regular os empréstimos externos, controlar alguns preços, investir diretamente em alguns setores, promover as exportações e controlar as importações.” De acordo com a citação acima, com a promoção do sistema exportador, o Estado sul coreano recorre ao modelo EOI, o que fez com que a economia do Novos Estudos em Extremo Oriente 66 país fosse restituída com o passar do tempo, desde o estado de assolamento econômico do período de guerra. Porém, essa alta no desenvolvimento, traz o lado das greves, salários baixos, gestões autoritárias e levantes – um dos mais conhecidos foi Massacre de Gwangju, conforme Lee (p.220, 2021), “Em 18 de maio de 1980, os moradores de Gwangju, a capital regional do sudoeste da Coreia, levantaram se em protesto contra uma extensão nacional da lei marcial que havia seguido um golpe militar.” – Esse episódio e repercussões perduraram até a democratização no final da década de 80 e, junto com ela a Coreia do Sul, passou por altos e baixos no setor econômico. Contudo, no mais ela foi um país que obteve um alto índice de desenvolvimento industrial, como exemplos podemos citar as marcas: Samsung Electronics Co., Ltd. – uma empresa transnacional, do ramo eletrônico e que tem seus produtos vendidos ao redor do mundo – e Hyundai Motor Company – multinacional sul coreana do ramo automobilístico. Voltando agora para o desenvolvimento da industrialização chinesa, após o Plano Quinquenal, foi lançado o “Grande Salto”, impulso este que começou na indústria de aço, Sheng (p.51, 2012), nos mostra que: “Em dezembro de 1957, a Comissão Nacional do Planejamento anunciou a meta de aço para 1958: 6,25 milhões de toneladas, um crescimento de 17% sobre 1957 (5,35 milhões de toneladas). Em junho de 1958, a mesma meta aumentou para 10,7 milhões de toneladas (100% sobre 1957). Entretanto, a produção de aço do país foi de apenas 0,7 milhão de tonelada por mês até julho.” O grande salto virou uma febre por toda a China por meio de propagandas e ações do Estado, a fim de valorizar sua matéria prima, assim como fez com outras também. Porém, com euforia desse novo plano econômico, aliada à rapidez e proporção que aconteceram as coisas, a questão agrícola gerou sérios problemas entre os chineses. Um deles foi a fome que abarcou grande parte da China, com perdas de grandes plantações. Diante disso, o país tentou buscar reorganizar suas práticas econômicas, afim de tentar solucionar tais problemas, que se resultaram da mudança do sistema agrícola o industrial. No entanto, na questão política, com a implantação do PCCh (Partido Comunista Chinês) a união de opositores ao sistema socialista gerou descontentamentos com as ideias de Mao e com isso perdendo sua influência. O resultado desse momento foi a Revolução Cultural (1967- 1976). De acordo com Zheng (p.79, 2004), “A renda nacional, em 1967 e 1968, caiu 7,4% e 6,5% [...] e o valor total da produção industrial decresceu 13,6% e 5%.”. Após esse decréscimo da economia, e após a morte de Mao Tsé-Tung, o nome de Deng Xiaoping (1904-1997), entra em vigor em 1978. Passadas mais de uma década de questões políticas e problemas econômicos, mesmo com os planos realizados por Mao, a China inicia um processo de tentativa de crescimento com as “quatro modernizações”, que de acordo com Trindade, abrangem as áreas, como: Novos Estudos em Extremo Oriente 67 "[...] No campo da modernização, a nova política persegue objetivos claros com relação aos quatro setores referidos: agricultura, indústria, defesa e ciência e tecnologia. Os dados não oficiais sobre o desenvolvimento da economia chinesa confirmam seu crescimento espetacular. Em 1983, a renda nacional cresceu 9% e no ano seguinte 12%. A produção agrícola aumenta significativamente: em 1982, cresce 11,2% e nos dois anos seguintes, 9,5% e 14,5% respectivamente.” (p.9, 1987) E com a abertura do país para o mercado internacional, segundo Ruiz (p.9, 2006), a China com as reformas iniciadas em 1979, mesmo com a desvalorização da moeda chinesa, fez com o país se torna-se um lugar de fácil expansão para investimentos estrangeiros, o que fez a economia crescer durante a década de 80 e seguir crescendo – apesar de momentos de instabilidades e crise – e tornando a China, a segunda maior economia mundial. Considerações finais Portanto, ao longo desta análise foi possível perceber que os três países passaram por conflitos antes de conseguir equilibrar sua economia, dando ênfase ao Japão, que teve dois processos industriais o primeiro na Era Meiji (1868-1912) e o segundo pós conflito em Hiroshima e Nagasaki, que desestruturou o país e fez com que cessasse os ataques japoneses no período da Segunda Guerra Mundial. Ademais, nota-se também que os fatores políticos da guerra fria também foram determinantes para os processos industriais dos países analisados. Na esfera política, a influência Norte-Americana esteve presente na reestruturação da Coreia do Sul, no pós guerra contra a parte Norte da Península Coreana, assim como o fator ideológico também interviu no processo de restauração do país. Também essa presença dos Estados Unidos, contribuiu com a industrialização do Japão. Já na China, havia inicialmente a formação da República Popular da China, após a Revolução Chinesa que iniciou os processos industriais e com a Revolução Cultural e o plano de abertura do país por Deng XiaoPing (1904—1997). O plano industrial do Japão e Coreia do Sul, indicavam as tendências do mercado e sua produção voltada para a exportação. A China, porém, investiu em planos econômicos e, posteriormente, para a abertura do seu mercado industrial. Desse modo, conclui-se que, no Japão e na Coreia do Sul há certa semelhança nas atividades industriais, divergindo apenas o processo Chinês – Quanto a forma de trabalho, o Japão introduz o Toyotismo, como resposta ao Fordismo – modelo produtivo estadunidense, criado por Henry Ford – e o Taylorismo – sistema de organização industrial, criado por Frederick Taylor – diferindo dos modelos ocidentais de atividade em fábrica. Contudo, é necessário expor o contexto de bipolaridade ideológica, a influência dos Tigres asiáticos, pois esses fatores interferem em como esses três países iriam agir, e como o Japão e a Coreia do Sul se tornaram exportadores para o mercado Novos Estudos em Extremo Oriente 68 internacional e assim passar a China até a década de 80. Momento este que a China deslancha com seu sistema industrial ao abrir seu mercado e sua economia, e obtém a prosperidade econômica a partir das décadas de 90 e os anos 2000 em diante. Referências Eduarda Christine Souza Puccié discente do curso de Licenciatura em História, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. BATISTA, Erika. A Dialética da Reestruturação Produtiva: a Processualidade entre Fordismo, Taylorismo e Toyotismo. Aurora, Marília, v. 7, n. 2, p. 17-34, Jan-Jun., 2014, p.29. Disponível em: . COELHO, Fernanda Peixoto; OLIVEIRA, Aline Rezende. O efeito do comércio exterior no desenvolvimento econômico dos tigres asiáticos. Aten@-Revista Digital de Gestão & Negócios-, v. 2, n. 4, p. 89-111, 2022, p.94. Disponível em: https://periodicosunimes.unimesvirtual.com.br/index.php/gestaoenegocios/article/view/1340. FILHO, Mário José Maestri. O Despertar do Dragão: O Nascimento do Imperialismo Chinês. Cadernos GPOSSHE On-line, Fortaleza, v.4, n. Único, 2021. Disponível em: . KIELY, Ray. Industrialization and development: A comparative analysis. UK: UCL Press, 1998. LEE, Seung Cheol. 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Voltando ao chá, a China se destaca como o maior produtor e o maior consumidor global em volume absoluto, correspondendo a impressionantes 41% do mercado atual [INDEX BOX, 2022]. Essa relação entre a China e o chá é longínqua, certamente anterior à dinastia Han (c. 206 AEC a 220 EC) [BENN, 2015]. Por isso, neste breve texto, consideraremos as múltiplas potencialidades do chá na China, limitando-nos aos períodos anteriores ao século XIX, quando tal produto se tornou uma commodity mundial. Longe de negar a extensa e bem produzida bibliografia acerca do chá no mercado global, após os anos 1800, nosso recorte diz respeito à história do chá como bebida nas esferas cultural e religiosa chinesas. Assim, optamos principalmente por fontes referentes às dinastias Tang e Song (581-1279 EC), período em que a literatura do chá encontrou seu ápice na China imperial. As principais evidências da história do chá vêm das elites chinesas e refletem as práticas e interesses de uma classe privilegiada. Entretanto, é possível, com o devido cuidado, vislumbrar os valores simbólico-culturais do chá para a sociedade chinesa de modo geral, passando pelo inconsciente de ricos e pobres [BENN, 2015, p. 3]. Não pretendemos, porém, inclusive pela limitação do espaço, apresentar uma história abrangente do chá, mas introduzir às práticas e significações simbólicas da bebida, sobretudo nas dinastias citadas. Tratando, dessa forma, das múltiplas recepções do chá na cultura alimentar chinesa. Para tanto, abordaremos a interpretação mitológica da origem da bebida, o desenvolvimento e a disseminação do chá na China e um pouco sobre a Novos Estudos em Extremo Oriente 71 formação da literatura especializada durante o período tradicional. Perceberemos, pois, que na atualidade o chá é um alimento mundialmente difundido, mas nem sempre foi assim, e podemos aprender muito sobre as dimensões do gosto e as práticas alimentares na sociedade imperial chinesa estudando seu desenvolvimento e disseminação. O desenvolvimento do chá enquanto marcador cultural chinês Pouco há sobre as origens do chá. Sabemos apenas que a bebida pode ter sido consumida pela primeira vez na China há mais de 4000 anos [GILBERT, 2008, p. 8]. Em verdade, não é central à História da Alimentação buscar as origens dos alimentos, mas compreender as temáticas integradoras das memórias gustativas, sentimentos e práticas alimentares no interior das estruturas culturais. Logo, a alimentação vai muito além de apenas comer e beber, revelando conotações simbólicas, sociais, políticas e culturais, mostrando-se um relevante fragmento das práticas que definem determinada sociedade [SANTOS, 2011, p. 111]. Como afirmou Michel de Certeau [2001], as práticas culturais (e nelas incluiremos a alimentação) revelam as maneiras de se fazer o cotidiano. Apesar do exposto, materiais bastante populares a respeito da história do chá frequentemente atribuem a origem da bebida ao mítico governante e herói chinês Shennong (神農), o Imperador Vermelho (r. 2737– 2697 AEC) [BEEN, 2015, p. 21]. Essa versão, que aparentemente teve início com os grandes autores clássicos da história do chá na China, ainda hoje é reafirmada, sem qualquer mérito histórico, por sites, reproduções midiáticas e, até mesmo, obras com alto grau de seriedade. De acordo com o décimo nono capítulo da obra Huainanzi (淮南子) – um clássico da filosofia chinesa, escrito na dinastia Han (c. 139 AEC) pelo Imperador Liu An (c. 179-122 AEC) e os sábios de sua corte – em tempos antigos as pessoas se alimentavam de plantas e bebiam apenas água, de modo que constantemente sofriam por doenças e envenenamentos provenientes de sua alimentação. O heroico Shennong,intitulado “fazendeiro divino”, teria pessoalmente testado várias ervas em nome da humanidade, definindo dentre elas aquelas adequadas ao consumo [LIU, 2010, p. 888-889]. Adiante, em meados da dinastia Tang, o escritor Lu Yu [1974, p. 115] narra que o Imperador Vermelho teria descoberto, acidentalmente, a bebida. De acordo com o mito, Shennong estava esquentando água à sombra de uma pequena árvore silvestre que balançava com o vento. Casualmente uma folha teria se desprendido dos galhos e caído na água fervente, criando uma infusão. O sabor surpreendeu o monarca, que se sentiu profundamente revigorado após terminar a bebida. Assim teria nascido a primeira xícara de chá. Ao que indicam as fontes, o clássico de Lu Yu foi a primeira obra a vincular, e de modo bastante convincente, o chá a um herói cultural, uma figura importante para a mitologia, agricultura e medicina na China. Aparentemente, a conexão lógica entre o Imperador Shennong e o chá se deve justamente às Novos Estudos em Extremo Oriente 72 potencialidades similares que congregam. Afinal, a planta também se fez célebre por sua relevância para a agricultura e economia chinesas, bem como por seus efeitos medicinais, considerados muito benéficos para corpo e mente [BENN, 2015, p. 30]. O sobrenatural que cerca a imagem de Shennong não se limitou à descoberta do chá, visto que ele é considerado o último dos Três Augustos, reis-deuses lendários que usaram seus poderes extraordinários para melhorar a vida das pessoas durante a Antiguidade chinesa [HUCKER, 1975, p. 22-23]. Historicamente, apesar de haver algumas poucas controvérsias quanto ao assunto, os estudiosos supõem ser bastante provável que a origem do chá seja realmente a China [BENN, 2015, p. 5-6]. Muitas vezes a Índia também é evocada como o berço do chá, entretanto, embora o chá selvagem possa ter crescido espontaneamente na região de Assam, no Leste indiano, a planta do chá não foi ali cultivada e comercializada até a invasão britânica do século XIX [STANDAGE, 2005, p. 168]. Como já mencionado, nossa pretensão não é a de vasculhar as fontes para reconstituir as origens do chá, mas entendê-lo como parte importante da história chinesa e destacado marcador cultural desde a China Antiga. O chá, inserido nas análises teórico-metodológicas da História da Alimentação, acompanha com afinco a economia, sociedade e cultura diversas. Como protagonista ou coadjuvante, contribuiu com inúmeras transformações dos espaços e das relações humanas, participando desde a comensalidade familiar cotidiana, até episódios de revolta e guerra – como as Guerras do Ópio [STANDAGE, 2005, p. 163-167] e a festa do chá de Boston [DINELLI, 2015, p. 38]. O termo Chá (茶) diz respeito tanto à bebida, quanto à planta (Camellia sinensis) que lhe dá origem. Na realidade, em português há uma palavra (tisana) para definir as infusões que não sejam preparadas exclusivamente a partir das folhas dessa planta. Entretanto, o termo é pouco usual, visto que se popularizou o nome chá como sinônimo de quaisquer infusões, sejam de flores, frutos, raízes ou ervas [WEIR et al, 2012, p. 43]. Comumente, os chás chineses são classificados em seis categorias, de acordo com a idade e tamanho das folhas, oxidação, tratamento pós-colheita, qualidade do produto etc. São elas: chá verde (绿茶), amarelo (黄茶), branco (白茶), oolong (青茶), vermelho (红茶) e preto (黑茶) [WEIR et al, 2012, p. 43]. A maior parte do chá consumido na China (tanto no período estudado, quanto na atualidade) é de chá verde, não oxidado [BENN, 2015, p. 8]. Como bem apontou o pesquisador estadunidense James A. Benn em sua obra Tea in China [2015], a história do chá não é a de uma China “atemporal e imutável”. Ao invés disso, as inúmeras e drásticas mudanças da história chinesa – que impactaram a economia, agricultura, trabalho, sociedade e cultura – refletiram também nas práticas de cultivo, comércio e consumo de chá. Tanto foi que a própria infraestrutura do sistema imperial assegurava a Novos Estudos em Extremo Oriente 73 difusão do produto, permitindo a composição de uma bebida nacional capaz de unir as macrorregiões da China Imperial [BENN, 2015, p. 3]. Segundo Benn [2015, p. 2, tradução nossa]: “o chá na China tradicional não era apenas uma mercadoria para ingestão diária; veio entrelaçado com uma série de associações e suposições sociais e culturais complexas”. Atualmente, o chá (a partir das ritualísticas sulistas da China medieval) passou a exercer um poder simbólico de marcador cultural para diversas sociedades do “Oriente” – inclusive, sendo apropriado e reinterpretado pelos denominados “ocidentais”, como na adesão ao gosto britânico no início do século XVIII [STANDAGE, 2005, p. 158]. A partir de então os europeus passaram, semelhantemente aos chineses, a beber chá como um símbolo de riqueza e sofisticação, embora o fizessem sob a égide de suas próprias consciências culturais [GILBERT, 2008, p. 8]. A difusão da cultura do chá O hábito de beber chá regularmente teve início durante a China Medieval com os monges budistas, prática mais tarde incorporada pelos literatos e, a posteriori, rapidamente adotada pela população em geral [BENN, 2015, p. 3]. Dessa difusão da bebida entre os chineses nasceu a necessidade de um recipiente que não adulterasse o sabor dos melhores chás (como ocorria com o uso de xícaras de madeira, metal ou barro, por exemplo), essa demanda estimulou o desenvolvimento da célebre porcelana chinesa [GILBERT, 2008, p. 8]. Preliminarmente, é necessário notarmos a heterogeneidade das práticas relativas ao consumo de chá ao longo do tempo. A difusão da bebida se confunde com a própria história da China, de modo que o consumo de chá passou por numerosas formatações até a sua composição tal como é no cerimonial moderno. Os métodos de infusão do chá, por exemplo, passaram por profundas modificações. Em tempos mais remotos, entre as dinastias Hang e Sui (cerca de 206 AEC a 618 EC) as folhas, ainda frescas, eram mergulhadas em água quente para preparação da bebida. Já na dinastia Tang (618 a 907 EC), o chá era comercializado em formato de bolos (folhas de chá não fermentadas eram cozidas no vapor, misturadas com um aglutinante e moldadas em bolos para que pudessem ser embalados e transportados por longas distâncias), posteriormente moído e infundido em água muito quente, mas não fervendo. Neste período aparecem possíveis aromatizantes para os chás, normalmente cascas de frutas cítricas, mas também sal, especiarias, cebola, cebolinha, gengibre, jujuba (açofeifa), bagas de corniso, frutas secas ou hortelã-pimenta que eram fervidos junto ao chá para agregar sabores, como explicou Lu Yu [1974, p. 116] em O clássico do chá (Chájīng). O autor faz questão de enfatizar seu menosprezo a essa técnica de preparo, pois transforma o chá em uma espécie de “sopa” [BENN, 2015, p. 9]. Apesar dos protestos de Lu Yu, o consumo do chá salgado como sopas não foi uma Novos Estudos em Extremo Oriente 74 prática finda. A cultura Hakka (ao sul da China continental) ainda hoje possui em sua culinária o tradicional Lei Cha (擂茶): um preparo de chá moído em pilão com especiarias, ervas e/ou temperos, que dá origem a um caldo condimentado e salgado. O lei cha é comumente servido puro ou acompanhado de amendoim e arroz, em outros casos é usado como acompanhamento de uma refeição principal. Atualmente, esse caldo hakka passou a integrar a alta gastronomia, sendo reinterpretado no cardápio dos restaurantes mais renomados da China. Durante a dinastia Song (960 a 1279 EC), o chá torrado e moído era batido com água quente para formar um líquido leitoso com uma espuma bastante apreciada. Diversos tratados surgem nesse período, orientando quanto ao consumo do chá, às diversas qualidades dos produtos e instruindo os amantes da bebida para que não fossem enganados pelos comerciantes. A partir da dinastia Ming (1368 a 1644 EC) é que o chápassou a ser infusionado em água fervente, assemelhando-se aos modos atuais de consumo – folhas de chá não fermentadas que são cozidas, enroladas e secas, depois comercializadas a granel. Somente no século XV surgiu o chá Oolong, produzido a partir de folhas oxidadas, depois murchas, cozidas, enroladas e secas para interrupção do processo de oxidação. O chá preto (ou vermelho, para os chineses) só apareceu na China em meados do século XIX [BENN, 2015, p. 5-9]. Um dos benefícios do chá para a economia e agricultura na China, deve-se ao fato de ser uma planta com potencial de cultivo mesmo em terrenos elevados ou regiões montanhosas, salvaguardando o nível do solo para o plantio de outros produtos de igual importância, como o arroz. Tal fato também auxiliou na difusão do chá dentro dos monastérios budistas e taoístas. Afinal, como a China possui uma geografia bastante irregular, os templos eram frequentemente edificados em áreas montanhosas, onde a prática agrícola se mostrou limitada [CIVITELLO, 2008, p. 18]. O chá contém cafeína, motivo pelo qual a bebida age como estimulante sobre o corpo e a mente. Tal efeito foi profundamente evocado a favor do consumo de chá entre poetas e sacerdotes chineses, desde a Antiguidade. Além disso, o chá era reconhecido como capaz de reduzir dores de cabeça e no corpo, conter a febre, auxiliar na digestão e no bom movimento intestinal, promover a saúde, bem-estar e longevidade dos indivíduos, bem como combater os efeitos do álcool – no pensamento tradicional chinês, o álcool inebriante e o chá revigorante representavam polos antagônicos, yin e yang [BENN, 2015, p. 6-11]. Não obstante, Lu Yu [1974, p. 111] enfatiza que: “A moderação é a própria essência do chá. O chá não se presta à extravagância”. Beber chá era considerado um grandioso medicamento, promovendo a cura de uma ampla gama de males, desde ataques epiléticos até disenteria. Foi utilizado inclusive como enxaguante bucal pelos chineses da dinastia Tang – o que não é de todo estranho, visto que ele realmente possui alto teor de fluoretos [CIVITELLO, 2008, p. 84]. De fato, muitos dos benefícios do chá à saúde humana foram ratificados pela medicina moderna [Cf. WEIR et al, 2012]. Novos Estudos em Extremo Oriente 75 Segundo Lilia Dinelli [2015, p. 35], desde o século VI EC, os monges budistas encontraram no chá o estado ideal para a prática da meditação: a bebida garantia o relaxamento do corpo ao mesmo passo que auxiliava a dominar o sono. Não à toa, no Hana Matsuri (花祭), festa budista que celebra o nascimento de Śākyamuni Buddha (o Buda histórico, Sidarta Gautama), uma imagem jovem do príncipe é banhada pelos fiéis com chá doce. Uma referência ao néctar que, segundo a tradição, choveu sobre a terra no dia do nascimento do monge desperto. O chá (assim como o vinho na tradição judaico-cristã) passou a representar uma série de significados simbólicos para a religião budista, criando profundas relações entre o comer e o rezar [cf. SOUZA, 2018]. Alguns estudiosos, como Dinelli [2015, p. 38], apresentam a hipótese de que o grande consumo de chá levou o povo chinês a se tornar sereno e tranquilo. Essa interpretação, além de atribuir juízos de valores às práticas alimentares, perpassa um já extenso debate dos orientalistas quanto à visão estereotipada que retratada os povos do “Oriente” exclusivamente a partir de um rol seleto de influências do budismo ou do confucionismo, comumente sob uma óptica marcada pelo redutivismo “ocidental” [SAID, 1996, p. 129]. A literatura e os estudos relativos ao chá Segundo Meng Yuanlao, escritor de uma das fontes clássicas do período Song, Dongjing Meng Hua Lu (東京夢華錄), ou Sonhos de Esplendor da capital oriental, o povo chinês detinha sete necessidades básicas e diárias. Eram elas: lenha (柴, chái), arroz (米, mĭ), óleo (油, yóu), sal (鹽, yán), molho de soja (醬, jiàng), vinagre (醋, cù) e, é claro, chá (茶, chá) [CIVITELLO, 2008, p. 87]. Assim, mesmo antes das grandes composições literárias acerca da bebida, o chá já aparece como recorrente elemento do cotidiano chinês. Durante as dinastias Tang e Song, escritos a respeito do chá eram classificados em temáticas específicas (agricultura, economia, geografia, literatura etc.) [ZANINI, 2017, p. 46]. A literatura relativa ao chá foi reconhecida na China como um gênero individual durante a dinastia Ming (1368-1644 EC), com a publicação da coletânea Chashu (Escritos sobre o Chá) em 1612. Na atualidade, o termo chashu (茶書) passou a designar, como rótulo geral, os ensaios acerca do chá escritos no período imperial chinês [ZANINI, 2017, p. 44-45]. O já referido texto de Lu Yu, como indica o próprio título (clássico), pretendia o status de pedra fundadora da tradição do chá e de seu cerimonial. De fato, o Chajing impactou profundamente o processo de difusão do consumo de chá na China Antiga. Durante séculos seu trabalho foi recebido como fonte inspiradora para os amantes da bebida, sendo considerado de inigualável importância para a cultura do chá – mesmo após os métodos de produção e consumo se alterarem daqueles prescritos por Lu Yu [ZANINI, 2017, p. 45]. Novos Estudos em Extremo Oriente 76 Ao optar pelo recorte das dinastias Tang e Song, não negamos as múltiplas e complexas atividades da cultura do chá em períodos posteriores, tais como o uso do chá de folhas soltas, o desenvolvimento do bule e a expansão de obras literárias a respeito da bebida durante as dinastias Ming e Qing (aproximadamente dos séculos XIV ao XX). Em verdade, partimos da leitura que as práticas e significados entorno do consumo de chá na atualidade, desenvolveu-se a partir de mutações e permanências de práticas anteriores, antigas e medievais, não representando caracteres inéditos [BENN, 2015, p. 3]. Em verdade, esse recorte se deve à observação de que, durante as dinastias Tang e Song, o consumo de chá, o desenvolvimento de casas de chá e o chá enquanto temática de inspiração artística, “tornaram-se parte do tecido da vida chinesa” [GILBERT, 2008, p. 8, tradução nossa]. Referências Felipe Daniel Ruzene é graduando da Licenciatura em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (BAT). Também estudou no Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (CTIG/UNESP), na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAr) e na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Membro discente do grupo de pesquisa Antiga e Conexões/UFPR, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Renata Senna Garraffoni. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br BEEN, J. A. Tea in China: a religious and cultural history. Honolulu: University of Hawai‘i Press, 2015. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. CIVITELLO, L. Cuisisne and culture: a history of food and people. 2ª Ed. Hoboken: John Wiley & Sons, 2008. DINELLI, L. “Experiências com o chá e com o país do chá” in Convenit Internacional, v. 19, p. 35-40, 2015. GILBERT, M. 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Novos Estudos em Extremo Oriente 78 UM HISTÓRICO DE RUSGAS E OS ESFORÇOS RECENTES DE PACIFICAÇÃO NAS RELAÇÕES BILATERAIS SINO-VATICANAS por Felipe Vidal Benvenuto Alberto Seja na data de concepção bíblica, narrada por seus fiéis, ou naquela relativizada pelos acontecimentos históricos subsequentes ao ano inaugural de nosso calendário vigente, o cristianismo tem protagonismo inquestionável nas construções de poder ao redor do mundo. Desde as pequenas esferas, que tangem o comportamento individual daqueles que nela creem, até a intervenção direta em decisões da alta política, a irmã do meio da tríade abraâmica tem sua história intrinsecamente amarrada na formação do mundo que hoje conhecemos. No entanto, à medida que a Igreja Católica se tornava um colosso, em frente a outras denominações mais ortodoxas, como representante direta da prática cristã no Ocidente, ao menos até o advento da Reforma Protestante, também seus dogmas e decisões passaram a ter cada vez mais relevância e para um público mais abrangente, esses muitas vezes tolhidos de suas crenças originárias. Em se falando do Sul Global, mais precisamente da América Latina, a Igreja exerceu um papel tão fundamental quanto controverso no processo de colonização do chamado Novo Mundo, com destaque para o período das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI, onde sacerdotes missionários constantemente integravam as comitivas de exploradores. Através da ordem religiosa Companhia de Jesus, cujos membros recebem a denominação de jesuítas, a catequização fez parte integral das práticas de aproximação para com os povos originários, sendo essencialmente exercida através de movimentos paralelos de doutrinação religiosa e assimilação cultural. A mesma Companhia de Jesus disfrutou também de algum protagonismo na Ásia, onde, poucos anos depois, buscava aprofundar a influência ocidental na região para além da atividade comercial já intensamente praticada por mercadores europeus. Difundido de maneira mais intensa no até então Império da China já no fim do século XVI, o catolicismo se deparou de imediato com um ambiente inóspito e com os primeiros sinais de que o caminho para seus objetivos não seria fácil. Como prenunciado inicialmente, já são mais de quatro séculos marcados por poucas concordâncias e muitas desavenças entre a Igreja e o gigante asiático. Novos Estudos em Extremo Oriente 79 Como era de se esperar, apesar das intensas mudanças históricas no xadrez global e reposicionamento estratégico da Igreja como peça nesse complexo tabuleiro, a chegada do Partido Comunista da China (PCCh) ao poder no país adicionou — ao menos — um grande fator complicador nas relações bilaterais entre esses dois atores internacionais. Enquanto o PCCh fundava a República Popular da China — daqui em diante chamada apenas de China —, a Igreja seguiu resistente a negociar com simpatizantes do comunismo e até hoje mantém relações diplomáticas com a República da China, nome oficial do território de Taiwan. Condição sine qua non para o estabelecimento de relações bilaterais, o reconhecimento da China continental parece ainda ser um entrave significativo no debate. O Papa do Sul Global e a virada de chave nas relações Recém-entronizado como novo Papa da Igreja, em 2013, Francisco logo iniciaria seus esforços para implementar aquilo que carregava consigo como ideal desde sua época de anonimato na Argentina. Ainda nos primeiros dias de papado, uma carta foi enviada a Xi Jinping a fim de parabenizá-lo pela missão de presidir a República Popular da China, posto que que o líder chinês chegava ao cargo no mesmo período. Os esforços de aproximação não se demonstrariam levianos, uma vez que a tentativa de contato, ainda unilateral, se repetiria por mais numerosas oportunidades. Passado algum tempo, foram organizadas comitivas da Santa Sé em direção ao gigante asiático, com o objetivo de mapear e explorar os “muitos pontos de encontro entre a China e o Vaticano”, segundo palavras do bispo argentino Marcelo Sánchez Sorondo, presente em um desses encontros. Buscar similaridades entre ambos os entes de poder passou a ser uma arma bastante eficaz na desmistificação dessa relação historicamente truncada, afinal estamos falando das “duas únicas instituições milenares do planeta” (IHU, 2018). Para o professor Francesco Sisci (IHU, 2018), um ponto de virada na relação sino-vaticana, ao menos sob a ótica chinesa, se deu em setembro de 2015, quando Bergoglio e Xi Jinping estiveram ao mesmo tempo nos EUA. Observar a relevância atribuída pela mídia local à presença do Sumo Pontífice teria alertado o presidente chinês a potenciais ganhos na construção de uma relação amistosa com a Santa Sé. Afinal de contas, Sisci (IHU, 2018) completaria sua análise afirmando que “[...] se o Vaticano é tão poderoso, não se trata apenas de gerir esses poucos milhões de católicos chineses”, segundo o lado chinês. Já sob a ótica da Santa Sé, fechar um acordo com Beijing é de suma importância para superar a divisão na prática do catolicismo chinês, tanto visando promover a liberdade religiosa a seus fiéis quanto logrando exercer na prática o caráter essencialmente universalista da Igreja Católica. Não obstante, Francisco não demonstrou pressa durante o amadurecimento das negociações e indicou saber muito bem que caso acelerasse certamente tropeçaria. Sem fugir de perguntas a esse respeito, Francisco (2018) já respondeu a Novos Estudos em Extremo Oriente 80 questionamentos sobre uma possível ida à China dizendo “[...], mas as portas do coração estão abertas. E penso que fará bem a todos uma viagem à China. Eu gostaria de a fazer...” Ao citar o pioneiro jesuíta Matteo Ricci em uma entrevista concedida em 2016, o Pontífice é paciente ao dizer que “[...] a experiência de Ricci nos ensina que é necessário dialogar com a China, que é uma fonte de sabedoria e história. É uma terra abençoada de muitas formas”. Essa não seria a primeira e nem a última vez que o Papa jesuíta recordaria os passos do histórico missionário da Companhia de Jesus: “Pessoalmente, sempre olhei para a China como uma terra rica de grandes oportunidades e, para o povo chinês, como artífice e guardião de um patrimônio inestimável de cultura e sabedoria, que se aperfeiçoou resistindo às adversidades e integrando as diferenças, e que não por acaso, desde os tempos antigos, entrou em contacto com a mensagem cristã. Como dizia com grande perspicácia o Padre Matteo Ricci, desafiando-nos para a virtude da confiança, ‘antes de contrair amizade, é preciso observar; depois de a ter contraído, é preciso fiar-se’. É minha convicção também que o encontro só pode ser autêntico e fecundo, se se verificar através da prática do diálogo, que significa conhecer-se, respeitar-se e caminhar juntos para construir um futuro comum de maior harmonia.” (FRANCISCO, 2018) Dos estudos mútuos às mesas de negociações O ano de 2016 estabelece um marco nos avanços das relações bilaterais sino-vaticanas a partir do momento em que um papa recebe, de maneira inédita, resposta proveniente do mais alto governante chinês. Xi Jinping não só respondeu a mensagem como enviou a Francisco uma réplica da Estela de Xian, item importantíssimo da literatura cristã que se trata do mais antigo contato da civilizaçãochinesa com o cristianismo e data de cerca de 635 d.C. (CARLETTI, 2008, p. 21), quando missionários siríacos enviados pela Igreja Oriental teriam deixado o elemento sob os cuidados da dinastia Tang (PELIKAN, 2015). Segundo Sisci (IHU, 2018), o recado estava além do ato da resposta, mas também incluiria uma mensagem de pertencimento do cristianismo à história chinesa, visando dissociar a prática de um pretenso ocidentalismo intrínseco. Logo no ano seguinte das posses de Francisco e de Xi Jinping, mais precisamente em 2014, ambos os Estados já haviam retomado contato oficial em busca de solucionar a questão que historicamente mais afasta os dois governos: a questão da nomeação dos bispos chineses. Essa questão muito pouco — ou nada — tem a ver com reconhecimento estatal ou formalização das relações bilaterais, mas sim envolveria um acordo meramente religioso. A Santa Sé alegava ambicionar apenas o gozo de alguma normalidade no trato de questões religiosas em território chinês. Já a representação chinesa na negociação apontava ainda intransigências pontuais por parte do Vaticano, que não entenderia os perigos que a ingerência ocidental já levou à China. Novos Estudos em Extremo Oriente 81 Após incontáveis reuniões, a notícia de que um acordo acerca do assunto estaria encaminhado veio de um dos maiores entusiastas da ideia: o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado da Santa Sé. Ao afirmar que em breve não haveria mais questionamentos acerca da legitimidade ou clandestinidade na Igreja chinesa, no início de 2018, o religioso preparou o terreno para um documento que já vinha sendo tratado a muitas mãos e há muitos anos. Parolin que, recentemente, ao escrever o prefácio de obra dedicada ao estudo de missões na China, inicia tomando para si as palavras outrora usadas por Pio XII em direção aos chineses: “Antes de tudo desejamos manifestar o nosso caloroso afeto por todo o povo da China” (PAROLIN, 2021, apud FRANGUELLI, 2021). Reações acaloradas em um ambiente já fragilizado Todavia, a singela prévia de notícia dada pelo Cardeal já seria suficiente para despertar reações dos mais diversos níveis. Do lado conservador da Igreja, mais uma oportunidade de tecer duras críticas ao papado “indisciplinado” de Francisco, mas mesmo na China o bom prognóstico não foi unanimidade. Enquanto John Tong, Cardeal chinês e bispo emérito de Hong Kong, recebeu as boas novas com expectativa de pacificação dos conflitos, Joseph Zen, também Cardeal chinês e bispo emérito, chegou a utilizar o termo “comercialização da Igreja” ao se referir ao acordo. Ainda no fim de 2017, as primeiras notícias sobre a possibilidade de normalização das relações já surgiam em noticiários chineses. As primeiras críticas não chegaram a ser realisticamente impactantes por terem sido rebatidas através do uso da própria figura do Papa, levando consigo sua habilidade inquestionável de acalmar os ânimos. Ao informar que Francisco estaria acompanhando as negociações pessoalmente, a Secretaria de Estado não deixou muita margem para dúvidas sobre a seriedade do caso. O grande assombro daqueles pertencentes à Igreja “clandestina” era, porém, que o Papa fosse enganado pelo governo de Beijing, abrindo as portas para aqueles que haviam aprisionado e torturado os seus sem garantias da contraparte. Em setembro de 2018, finalmente era assinado um acordo provisório entre a Santa Sé e o governo de Beijing em face da nomeação dos bispos chineses. Tratando-se de um claro reflexo da mudança nas políticas adotadas pelas respectivas lideranças em ambos os países, cabe, ainda assim, ressaltar alguns fatores que podem ter sido predominantes para essa guinada a um entendimento. A pesquisa pode ser enquadrada no âmbito das análises de Política Externa, onde elementos como cultura e religião, em particular a chamada Faith Diplomacy emerge como um fator condicionante na construção das relações de força no cenário internacional (LEIGHT, 2011, apud CARLETTI, 2019). O olhar diferenciado do governo Xi para o fator religioso Se quando chegou ao poder Xi Jinping implementou uma política fortemente nacionalista, tudo leva a crer que o passar dos anos e sua habilidade diplomática o levaram a considerar outros caminhos para a manutenção do Novos Estudos em Extremo Oriente 82 acelerado desenvolvimento chinês. Para além dos convencionais meios de coerção e demonstração de força, a China tem se aventurado por práticas que poderiam perfeitamente se encaixar no conceito de soft power cunhado por Joseph Nye. Segundo BECARD (2019), citado por CARLETTI (2019), Wang Huning teria sido o responsável por levar tal conceito ao país asiático, sendo ele muito útil desde os acontecimentos da Praça Tiananmen – repressão violenta empregada pelo governo chinês a manifestações pacíficas que aconteciam no local, resultando em um massacre que produziu imagens bastante negativas da China para o mundo (SPENCE, 2013, p. 581) – e atingindo seu auge nos Jogos Olímpicos de 2008, em Beijing. Proeminente teórico político chinês, Huning compõe o Comitê Permanente do Politburo do PCCh, ou seja, a mais alta cúpula do partido. Pelo mesmo motivo, é apontado por muitos como principal ideólogo do governo comunista. Em 2001, o então presidente Jiang Zemin pela primeira vez reconheceu que a religião poderia agir como força estabilizadora na sociedade e, assim, pode ser considerada uma força positiva para o desenvolvimento nacional (LEUNG, 2005, apud CARLETTI, 2019). Uma vez compreendida a relevância do fator religioso como atenuador de problemáticas na interação com outros entes do sistema internacional, a disputa que surge internamente à China é: abraçar o que seria “chinês por essência” ou admitir uma religiosidade de fato livre? Ainda que, por exemplo, os ensinamentos de Confúcio não necessariamente se sobreponham à atividade religiosa, é bastante difícil imaginar um povo com uma tradição tão longínqua quanto os chineses aderindo massivamente a práticas sincréticas com ritos ocidentais em algum grau. Frequentemente trazido de volta aos discursos públicos por Xi Jinping, o pensamento confuciano tem sido instrumentalizado politicamente, sob o prisma da religião, a fim de preencher uma lacuna sentida pelo povo chinês com um elemento fortemente identificado com a história local. A China sabe que não poderá competir pela liderança global apenas com o incremento da sua força econômica e militar. Embora necessárias, estas dimensões de poder não são suficientes. Sabe-se que deve haver valores, padrões morais e éticos para apoiar a ascensão chinesa no mundo. Em outras palavras, é preciso ter soft power. E, neste quesito, o pensamento de Confúcio e sua imagem são capitais culturais valiosos a serem explorados. (CARVALHO, 2019) Depois de algum tempo vigente, ainda que cercado de polêmicas envolvendo principalmente trocas de bispos sob ordem expressa do Vaticano e pronunciamentos acalorados do já referenciado Cardeal Joseph Zen, principal voz de resistência à negociação com o governo comunista, o acordo provisório deu sinais de fragilidade. A despeito de seus 90 anos, o Cardeal Zen não se limita a exercer suas atividades religiosas na clandestinidade, mas concede também muitas entrevistas e se coloca como publicamente oposto a qualquer concessão do Vaticano ao regime comunista. O respeitado bispo emérito de Hong Kong já teve a oportunidade até mesmo de se reunir com o Papa a fim de debater a situação na região, já que sua radicalidade quase intransigente, em Novos Estudos em Extremo Oriente 83 termos políticos, não se reproduz no quesito religioso e por fim Zen não estaria completamente errado: “Por muitos anos, a Igreja de Hong Kong apoiou o Papa em sua empolgação, agindo como uma ponte entre as duas comunidades. Quando ouvimos críticas da comunidade oficial contra a comunidade clandestina, defendemos esta última dizendo que sua posição é legítima. Em vez disso,quando ouvimos a comunidade clandestina criticar a comunidade oficial como se todos fossem traidores da Igreja, dizemos: ‘Não! Nem todos eles! Porque conhecemos esses irmãos. Vivemos juntos há muito tempo. Muitos deles são fortes e corajosos, mantendo a verdadeira fé enquanto estão em uma estrutura tão desfavorável.’” (ZEN, 2019, tradução minha) A aparente vitória do clima de incerteza No fim de 2020, pouco depois de trocar notas diplomáticas com Roma a fim de renovar o acordo por mais dois anos, o governo de Beijing estabeleceu abertura de processo de seleção de bispos sem nenhuma anuência papal. Não cogitando apresentar explicação oficial, o lado chinês, que alega estar agindo em consonância com o previsto no acordo, esse já não mais dentro da validade e ainda sob sigilo, segue colecionando casos de perseguição a praticantes “subversivos” do catolicismo no país. Cerca de uma centena de policiais invadiu, em maio de 2021, um seminário católico a fim de prender a liderança religiosa local, famoso ativista não-alinhado com o governo central. Na ausência do monsenhor no local, dezenas de sacerdotes e seminaristas foram detidos. (IHU, 2021) Já há apenas dois meses, em dezembro de 2021, bispos subordinados ao governo de Beijing realizaram inédita reunião a portas fechadas com aqueles que atuam em Hong Kong e respondem ao Vaticano. Relatos do encontro dão conta de que foi uma reunião voltada para levar uma mensagem e que Xi Jinping nunca teria sido tão enfático ao descrever seu desejo de religião com “características chinesas”. Apesar de seguir defendendo o diálogo, Francisco começa a ficar esvaziado em seu discurso, uma vez que as alegações de desconfiança acerca do governo chinês não se mostraram totalmente infundadas. Em sua mais recente entrevista sobre o tema, o argentino afirmou que "[...] a China não é fácil, mas estou convencido de que não deveríamos desistir do diálogo" e disse ainda que "[...] você pode ser enganado no diálogo, pode cometer erros, tudo isso..., mas é o caminho. Uma mente fechada nunca é o caminho". (PULLELLA, 2021) Referências Felipe Vidal Benvenuto Alberto é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI da UERJ, bacharel em Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais pelo CEFET/RJ, com período de mobilidade acadêmica na Faculté des Sciences Juridiques, Politiques et Sociales da Université de Lille e pesquisador do Núcleo de Estudos Atores e Agendas de Política Externa (NEAAPE) do IESP/UERJ. Novos Estudos em Extremo Oriente 84 CARLETTI, Anna. A Faith Diplomacy de Xi Jinping: as Implicações Político-Religiosas do acordo provisório sobre a nomeação dos bispos católicos na China. Conjuntura Internacional, v. 16, n. 3, p. 24-33, 1 dez. 2019. _________, Anna. Diplomacia e Religião: Encontros e Desencontros nas Relações entre a Santa Sé e a República Popular da China de 1949 a 2005. Brasília: FUNAG, 2008. CARVALHO, Evandro Menezes de. Reflexões Sobre o Confucionismo no Socialismo com Características Chinesas. In: CARVALHO, Evandro Menezes de; SILVEIRA, Janaína Camara da (orgs.) A China por Sinólogos Brasileiros: Visões sobre Economia, Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Batel, 2019. p. 99-124. FRANCISCO. Mensagem do Papa Francisco aos Católicos Chineses e à Igreja Universal, 26 de setembro de 2018. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2018/documents/papa-francesco_20180926_messaggio-cattolici-cinesi.html. Acessado em: 21 de fevereiro de 2022. FRANGUELLI, Bruno. Cardeal Parolin em livro sobre a China: “tudo está dentro de um plano de Deus”. Vatican News, Vaticano, 14 de maio de 2021. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2021-05/cardeal-parolin-em-livro-sobre-a-china.html. Acessado em: 21 de fevereiro de 2022. IHU, China-Vaticano: vigília de um possível acordo. Artigo de Francesco Sisci. Revista Insituto Humanitas Unisinos, 25 de fevereiro de 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/576377-china-vaticano-vigilia-de-um-possivel-acordo-artigo-de-francesco-sisci. Acessado em: 20 de fevereiro de 2022. _____, O arrastão de Pequim no seminário católico: preso um bispo. Revista Insituto Humanitas Unisinos, 24 de maio de 2021. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/609515-o-arrastao-de-pequim-no-seminario-catolico-preso-um-bispo. Acessado em: 20 de fevereiro de 2022. PELIKAN, Jaroslav. O Espírito do Cristianismo Oriental (600-1700). A Tradição Cristã: Uma História do Desenvolvimento da Doutrina, Vol. 2. São Paulo: Shedd Publicações, 2015. PULLELLA, Philip. Papa defende acordo com China e diz que diálogo é necessário. Terra, Madrid, 1 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/papa-defende-acordo-com-china-e-diz-que-dialogo-e-necessario,770d9b9d0ee0af867c08a27116be8aa4elv9u14e.html. Acessado em: 25 de fevereiro de 2022. Novos Estudos em Extremo Oriente 85 ZEN, Joseph. For Love of My People I Will Not Remain Silent: On the Situation of the Church in China. San Francisco: Ignatius Press, 2019. Novos Estudos em Extremo Oriente 86 NATSUME SOSEKI EM KOKORO (“CORAÇÃO”): A IDENTIDADE COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DA MODERNIZAÇÃO JAPONESA por Levi Yoriyaz Apresentação do tema e discussão teórica “Then at the height of the summer Emperor Meiji passed away. I felt as though the spirit of the Meiji era had begun with the Emperor and had ended with him. I was overcome with the feeling that I and the others, who had been brought up in that era, were now left behind to live as anachronisms” (SOSEKI, 1957, pág. 240) A trecho acima, do romance, Kokoro (1914), de Natsume Soseki, é parte da carta de suicídio do protagonista, na qual ele procura comparar o fim da vida com o fim de uma era, era este que representava toda uma compreensão de mundo e de sentido, e que se sintetizava na imagem do imperador Meiji, trazendo a impressão de que o indivíduo que fez parte daquele mesmo período também estivesse forçado a encarar seu próprio fim. Esta era a sensação que Sensei, o protagonista do romance, sofria como um indivíduo que fora destituído de seu tempo, perdendo toda base que dava significado à sua existência. A obra Kokoro é constituída por duas partes. A primeira consiste na descrição do protagonista, Sensei, a partir de uma ótica de um estudante, o qual o toma como um critério para a análise das relações pessoais à sua volta, em particular aquelas que se situam no âmbito das questões familiares. A segunda parte se volta para a apresentação da carta de Sensei ao estudante, na qual aquele narra o período de sua juventude (KATO, 1983, pág. 139-140). A obra literária apresenta um diálogo entre dois sujeitos de mundos distintos, expondo duas perspectivas de mundo a respeito do processo de modernização pelo qual passava Japão, e o impacto deste nas relações sociais e particulares dos indivíduos. É partindo da narrativa sobre a interação dos protagonistas com os demais sujeitos que Soseki desdobra os conceitos de moderno e de individualismo presentes no Japão, o que são considerados pelo autor provindos de uma origem externa introduzida pelos valores do Ocidente. Tal situação é descrita na medida em que o estudante o considera Sensei como seu mentor, por conta dos relatos autobiográficos que este último lhe faz. São nestas passagens que Soseki fornece elementos referentes à sua perspectiva sobre o individualismo como uma possível ameaça às tradições japonesas, na medida mesma em que o vê como uma espécie de egocentrismo pelo qual o Novos Estudos em Extremo Oriente 87 indivíduo passa a usar sua condição social para abusar de outros (MONZANI, 2011, pág. 52). Durante a Restauração Meiji, o termo “literatura” (bungaku 文学), como arte literária, não existia no Japão. Porém, pode-se pensar que o Japão teve uma experiência literária, por meio das referências da produçãopoética da China, e da Coréia, contendo uma forte presença da filosofia confucionista, como observa Brett de Bary: “This was because of that time of the Meiji Restoration in 1868, the inclusive term “literature”, or bungaku, did not yet exist in Japanese, and different genres were referred to by their specific names. Karatani therefore emphasizes Sôseki’s relationship to kanbungaku, a modern Japanese term we have carried over into the English translation to emphasize its specificity in the Japanese context. Literary Chinese, much like Latin in Europe prior to the seventeenth century, was the common written language of the Chinese, Japanese, and Korean intelligentsia into the late nineteenth century.” (BARY, 1992, pág. 4) Entretanto no decorrer do período Meiji ocorre uma ressignificação dos valores confucionistas por meio das interpretações da escola neo-confucionista Mitogaku, como foi visto anteriormente. Nesse aspecto as obras literárias escritas em chinês, tinham como função, segundo Karatani, inserir a escrita chinesa para o padrão gramatical japonês, incorporando, uma nova forma de escrita conhecido como kanbun, deixando de ser uma literatura propriamente chinesa. Além disso, é importante ressaltar que grande parte das obras escritas, em kanbun, era realizada por autores japoneses, como aponta Bary: “Kanbun texts, however, could be said to have been canonical in so far as they were the basis for the education of the Tokugawa elite. Such texts included Chinese Confucian classics; Chinese poetry, historical writing, and essays, as well as writings in diverse genres produced by Japanese.” (BARY, 1992, pág.4) Nesse sentido, é importante ressaltar que a noção de “literatura” trabalhada por Soseki não se passa pela institucionalização de uma literatura nacional japonesa, mas consiste antes na tentativa de propor uma “teoria da literatura” no Japão (KARATANI, 1993, pág. 14-15). Neste aspecto, Soseki busca desenvolver uma forma para poder definir a literatura japonesa, isto é elaborar uma expressão linguística própria no romance japonês. Karatani investiga tal característica através da formação da língua japonesa, que, por sua vez, teve como base a escrita chinesa, cuja literatura se dava pelo termo kanbungaku: “É através desse recurso que Soseki aponta a distinção da perspectiva ocidental e oriental em relação ao comportamento entre o indivíduo e o espaço, pois o autor japonês trata o kanbungaku como uma paisagem artística (sansuiga), logo, um quadro, em que Novos Estudos em Extremo Oriente 88 tanto o sujeito e o objeto fazem parte da mesma pintura, sem que haja uma separação de ambos os componentes. Desse modo, a noção de identidade individual no viés ocidental se tornava incompatível com a realidade japonesa.” (KARATANI, 1993, pág. 18-20). Desse modo, Natsume Soseki é um dos escritores que, em suas obras, têm como preocupação ilustrar um período em que a forma, ou qualquer estrutura de conhecimento ou modo de viver passa a se sujeitar à mudança, de maneira que não haja princípios ou bases sólidas que sustentem a cultura japonesa, através da descrição dos gestos e comportamentos do indivíduo, o japonês, e da interação pessoal do sujeito com o outro, o que por sua vez, é moldada pelo processo de modernização referente à era Meiji. Nesse aspecto, a problemática da concepção do “moderno” presente nas narrativas de Soseki e a maneira de como este se manifestada no meio urbano japonês, se assemelha à noção de “moderno” apresentada por Baudelaire, no sentido de tratar a realidade como algo transitório, e frágil, ao mesmo tempo em que se mantém referências a valores transcendentes: “A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno imutável. (...) Esse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes, não se tem o direito desprezá-lo ou de dispensá-lo.” (BAUDELAIRE, 2010, pág. 35). Baudelaire expressa a sua noção de “modernidade” na arte ocidental, aplicando esta mesma ideia nas manifestações cotidianas da sociedade europeia, isto é nos gestos, formas de vestir, representando, assim, os valores sociais existentes, apontando que a forma passa a se tornar líquida, ou seja, a estrutura que define os valores sociais passa a se tornar frágil. Nesse sentido, o que se observa no caso de Soseki é a posicionamento de um sujeito pertencente a uma noção de realidade, cujos valores sociais eram definidos por uma estrutura rígida e imóvel, e que uma vez deparando-se com um mundo que passa a sofrer mudanças sociais, passa ele mesmo a se transformar enquanto indivíduo, porém, enfrentando as contradições que se manifestam em sua nova realidade, a qual passa a se tornar paradoxal. Essa problemática se demonstra mais clara, no momento em que a obra fala sobre o relacionamento entre Sensei e seu amigo K, no aspecto em que ambos expõem suas respectivas visões de mundo, no momento em que discutiam sobre o sentimento de afeto que K tem com a Ojosan e o conflito que o mesmo tem em relação compreensão de mundo: “K had always been fond of the phrase, “concentration of mind”. When I first heard K mention it, I thought it likely that “concentration of mind” implied, among other things, “control of passions”. When I learned later that much more than this was implied, I was surprised. It was K’s belief that everything had to be sacrificed for the sake of “the true way”. Even love without bodily desire was to be avoided. Pursuit of “the true way” necessitated not merely restraint of appetite, Novos Estudos em Extremo Oriente 89 but total abstinence; K made all this clear to me when he was living alone and trying to support himself. I was already in love with Ojosan by that time, and I used to argue with him whenever he brought up the subject of “the true way”. (…) What I feared was the harm he might cause me if he decided to change his ways. It was simply self-interest that prompted my remark.” (SOSEKI, 1957, pág. 215) A passagem acima aponta duas concepções de sujeito, a primeira corresponde à figura de K, em que é retratado como uma pessoa pertencente aos valores tradicionais, representados pelo ideal budista que é identificado nos elementos tais como “concentração de mente” e “caminho correto”, prezando principalmente a repressão dos desejos do ego individual em prol de um todo. Assim, o aspecto do “caminho correto” que K tanto preza é a consciência de que o indivíduo se faz pertencente de um conjunto, dito como mundo, de modo que a pessoa em si, é desprovida de significado e valor, assim como o mundo, ou a natureza em si não possui sentido. Ela é caótica, apesar de seguir uma ordem natural, ditado pela natureza material, o que leva a concluir que o sujeito e a natureza em si, é vazia. A segunda concepção se passa pela imagem de Sensei, em que se preza o indivíduo, ou seja, o mundo é ditado pelo ser. Pode se notar as características do homem “moderno” na atuação do protagonista do fato deste temer da possibilidade de seu amigo K mudar a sua forma de pensar em prol de seus desejos, assim como próprio Sensei havia mudado na sua maneira de ser no momento quando passou a apresentar sentimentos em relação à Ojosan. Essa mudança é o que caracteriza o “moderno”, pois é o elemento que altera as relações pessoais no decorrer da narrativa da obra Kokoro, além de ser encarado como um problema externo. Dessa forma, o ponto que se identifica nessa questão é justamente a preocupação das questões individuais, como fator que acarreta o desaparecimento do reconhecimento do outro, provocando o distanciamento de K e de Sensei. Tal distanciamento não se dá em função de um atrito por ambos desejarem a mesma pessoa, mas pelo aspecto de K ter permanecido com sua visão de mundo, enquanto Sensei já havia mudado, como pessoa, ou seja, não era mais o mesmo amigo que K outrora conhecera. Nesse sentido, Soseki aponta umaruptura dos valores que davam significado à sociedade japonesa que, por sua vez, dá lugar a concepções de modernidade provenientes de ideais estrangeiros. Outro ponto importante que a figura de Sensei demonstra é a ausência de significado, a renúncia à vida, restando apenas o sentimento de melancolia e culpa pela morte de seu amigo K, devido a um conflito amoroso na sua juventude, assim buscando conformidade com a morte, se identificando com o suicídio de K e com o falecimento do imperador. Neste aspecto, Soseki utiliza o recurso de Monomane, isto é imitação, no sentido de o indivíduo apresentar um gesto em conformidade com a atuação de outrem, ou seja, o ato da pessoa se parecer com o outro. Nesse caso, trata-se de uma valorização do coletivo em detrimento do indivíduo, como uma forma de prazer na sensação de fazer parte de um todo, como aponta o antropólogo Michitaro Tada: Novos Estudos em Extremo Oriente 90 “Ocorre-me agora que a razão pela qual sentimos prazer ao experimentar a desintegração do “eu” é que, no fundo, o que sentimos de fato é um grande alívio durante essas experiências. E isso ocorre porque em nossa sociedade existe uma unidade garantida, baseada no pressuposto de que todos nós “nos parecemos” com outro alguém. Dessa forma, somos firmemente amparados pela interconectividade que esse acordo tácito implica. Por essa razão, quando experimentamos uma desintegração do “eu”, permanecemos não obstante confiantes e à vontade, pois recorremos ao sentido subjacente de uma unidade assegurada que nos apoia” (TADA, 2009. Pág. 25). É nesse comportamento que o personagem de Soseki encontra conforto e alívio ao buscar a identificação e o desejo de realizar o mesmo ato de renúncia à vida do imperador e do seu leal general Nogi, pois, ambos representam os valores e as tradições que foram responsáveis pela formação da geração de Sensei. Esta circunstância pode ser descrita como um homem no seu tempo, que perante a vinda de um mundo totalmente distinto do seu, escolhe abdicar de sua vida, assim como seus contemporâneos fazem, permanecendo assim no seu respectivo tempo, além disso, ocultando sua individualidade e se alinhando com o coletivo. Partindo disso, tal posicionamento é mais que uma válvula de escape dos problemas pessoais do protagonista, mas uma postura social da parte do personagem em relação ao mundo em que se identifica. Materiais e Métodos O trabalho é conduzido por meio da reflexão de Karatani Kojin da sua obra Origins of Modern Japanese Literature de 1993. Por meio desse material, é permitido que se possa desenvolver uma análise histórico de como o conceito de identidade do “eu”, no sentido moderno foi sendo desenvolvido e presente na literatura japonesa, partindo da obra de Natsume Soseki, no caso, o Kokoro de 1914. Nesse sentido, o foco se dá na atenção da produção literária japonesa, no espectro do romance, acompanhando como o elemento da modernização vinda do ocidente para a sociedade japonesa se manifesta no campo da literatura. A discussão sobre a conceituação da identidade do “eu”, no campo da cultura e do espectro social japonês, foi desenvolvido uma reflexão com as perspectivas apresentados por Tada Michitaro e Nakagawa Hisayasu no que concerne a respeito de linguagens gestuais e expressões da fala japonesa que nos permitem interpretar e analisar facetas do “eu” japonês e de suas nuanças com a introdução da modernidade no período Meiji. Conclusão Nesse sentido, Soseki manifesta em Kokoro o conceito de identidade japonesa mergulhado no coletivo no aspecto da morte como forma de um posicionamento defensivo perante o estrangeiro, isto é a presença do “moderno” ocidental no cotidiano japonês. Ou seja, trata-se de uma reação, Novos Estudos em Extremo Oriente 91 pelo menos na obra de Soseki, ao individualismo fator que é visto como algo externo pelo autor, e apontado como característico do processo de modernização que se fez no Japão moderno. Nota-se ao longo da narrativa que o “eu” japonês sempre se encontra inserido num contexto ou circunstância específica, dotado de um determinado sentido, levando sempre em conta o fator da pessoa se comparar com o outro, buscando semelhanças não propriamente de um determinado indivíduo, mas de um todo, fator que demonstra um alinhamento do indivíduo com a sociedade. Hisayasu Nakagawa identifica esse fenômeno na língua japonesa, em que se observa a ausência da autoafirmação do eu japonês em que o “eu” sempre se encontra inserido num determinado contexto, ou seja, o seu significado provém de um fator externo e não de si: “Para chegar a uma explicação mais concreta, vou utilizar o exemplo seguinte. Supunha que uma criança esteja assustada diante de um cão enorme. Para tranquilizá-la, chego perto dela e digo, em francês: “Não tenha medo, não chore eu estou aqui com você”. Mas, em japonês, vou dizer, em tradução literal: “Não tenha medo, não chore, seu paizinho está com você”, qualificando-me em relação a ela como seu paizinho (ojisan, em japonês). O eu é definido, em função da circunstância, pela relação com o outro: sua validade é circunstancial, ao contrário do que ocorre nas línguas europeias, nas quais a identidade se afirma independentemente da situação” (NAKAGAWA, 2008. Pág. 25-26). O eu japonês, portanto, se encontra inserido num determinado locus o que limita a sua forma de ser empregado. Esta questão se faz presente na realidade japonesa até nos dias atuais, fator que se configura não apenas na linguagem, mas também repercute tanto no aspecto comportamental do indivíduo como na sociedade como um todo. A problemática, porém, que se observa na sociedade japonesa moderna é o que Michitaro Tada aponta como “sociedade informe”, isto é que apesar de haver uma estrutura definida por uma linguagem que, por sua vez, circunscreve as ações do indivíduo no cotidiano, inserido numa noção de coletividade, esta mesma linguagem é desprovida de significado e sentido, ou seja, ela é vazia (2009, pág. 126). Este fator é identificado no personagem de Soseki, porém, este consegue solucionar o problema ao se integrar com os valores existentes de seu tempo. Referências Levi Yoriyaz Mestrando em História do Programa de Pós Graduação da Instituição de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp; 2 Fontes: SOSEKI, Natsume. Kokoro. Chicago: Henry Regnery Company, 1957. BARY, Brett de. Introduction .In: KARATANI, Kojin. Origins of Modern Japanese Literature. Duke University Press Books, Durham and London, 1993. Novos Estudos em Extremo Oriente 92 BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida moderna. In: DUFILHO, Jérome (Con); KARATANI, Kojin. Origins of Modern Japanese Literature. Duke University Press Books, Durham and London, 1993. MONZANI, João Marcelo Amaral Reimão. Uma abordagem do romance Kokoro de Natsume Sôseki. Dissertação apresentada ao Departamento de Letras Orientais para título de mestre em Letras – Língua, Literatura e Cultura Japonesa, São Paulo, 2011. NAKAGAWA, Hisayasu. Introdução à cultura japonesa: ensaio de antropologia recíproca. São Paulo: Martins Fontes, 2008. TADA, Michitaro. A cultura gestural japonesa: manifestações modernas de uma cultura clássica. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Novos Estudos em Extremo Oriente 93 AS CRISES QUE ORIGINARAM AS MIGRAÇÕES E A DIÁSPORA CHINESA EM MEADOS DO SÉCULO XIX por Maria Teresa Lopes da Silva Durante mais de dois mil anos a organização política, a estrutura social e o modo de produção na China sofreram poucas alterações. O império estava dividido em várias regiões, cada uma com a sua estrutura administrativa, identidade económica e social, mas unidas pelo dever de obediência ao imperador. Nos finais do século XVIII apareceram os primeiros sinais inquietantes de degradação do Estado e do equilíbrio social, porque a população começou a crescer e a economia, fundamentalmente agrária, deixou de responderdo RāmāyaṆa de Vālmīki’ por Matheus Landau de Carvalho, é um estudo cuidadoso e extenso sobre os impactos da literatura tradicional indiana – no caso específico o ‘Ramayana’ – sobre a mentalidade histórica dessa sociedade, em um ensaio levado a cabo por um dos poucos e seletos especialistas em Indologia em nosso país. Por fim, ‘Pashtunistão: entre o extremismo islâmico e o pacifismo, o etnonacionalismo no Afeganistão e Paquistão’ por Yuri Alan Maciel Tesch nos traz um pouco mais de luz sobre a complexa história dessa região, a importância da cultura islâmica nessas sociedades e os desafios políticos que essa formação enfrenta no mundo atual. Não poderíamos fechar essa apresentação sem novamente manifestarmos o nosso desejo de que a leitura de nosso volume seja proveitosa e enriquecedora. Cumpre, mais uma vez, lembrar do bom e velho mestre Confúcio, no ‘Lunyu’, que dizia: Novos Estudos em Extremo Oriente 9 Amar o humanismo sem amar o estudo gera estupidez. Amar o conhecimento sem amar o estudo gera superficialidade. Amar a educação sem amar o estudo gera ganância. Amar a sinceridade sem amar o estudo gera grosseria. Amar a coragem sem amar o estudo gera violência. Amar o poder sem amar o estudo gera a desordem. Sejamos nós a fazer a diferença! André Bueno Primavera, 2022 Novos Estudos em Extremo Oriente 10 TEXTOS Novos Estudos em Extremo Oriente 11 A INDÚSTRIA DE MICROELETRÔNICA COMO PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO DA COREIA DO SUL por Alexandre Black de Albuquerque Introdução É notório que a Coreia do Sul conseguiu, nos últimos 70 anos, passar de uma nação rural, tecnologicamente atrasada e com baixa renda per capita, para se tornar uma das economias mais dinâmicas do mundo, produtora, e exportadora, de bens de alto valor agregado e com grande conteúdo tecnológico, sobretudo semicondutores, eletrônicos em geral e computadores, mas também carros, navios e maquinário industrial. Dois dos principais motores do desenvolvimento coreano foram o investimento em educação, que teve início logo a pós a independência e virou uma quase obsessão nacional, e o investimento em pesquisa e desenvolvimento – P&D que, no longo prazo, permitiu a graduação tecnológica que transformou o ambiente econômico e social do país. É certo que muitos outros fatores contribuíram para esse desenvolvimento, como a reforma agrária, a estruturação de um Estado desenvolvimentista que utilizou de medidas como protecionismo econômico, criação de estatais, controle do financiamento, imposição de regras de competitividade e metas de exportações ao setor privado e a formação dos conglomerados industriais – Chaebols. Neste texto nos ateremos a questão tecnológica, tão em voga pelo crescimento da chamada indústria 4.0 (internet das coisas, computação nas nuvens, etc.) e tecnologias como o padrão 5G de telefonia móvel e transmissão de dados, áreas em que a Coreia do Sul está bastante desenvolvida, inclusive como fornecedora de semicondutores necessários ao desenvolvimento e produção dos equipamentos capazes de operar o padrão 5G. Segundo Narula (1993), há cinco estágios de desenvolvimento – ou Dynamic Economic Development Model –, sendo eles, de forma simplificada, os seguintes: Estágio 1 – Países com economia baseada em bens primários e baixa taxa de investimento. O padrão educacional, em geral, é bastante deficitário. Comprometendo o processo de acumulação. Demanda fraca e pouco exigente. Nesse cenário a atuação estatal é vital para desencadear o desenvolvimento nacional. Novos Estudos em Extremo Oriente 12 Estágio 2 – Prevalece a ótica da substituição de importações e uma moderada orientação exportadora. Os monopólios e oligopólios ganham preponderância. Tem início a graduação tecnológica. Atuação estatal permanece importante. Estágio 3 – Áreas tecnológicas assumem a liderança do processo de acumulação. A atuação estatal muda de orientação: mais gerenciamento e menos execução. Estágio 4 – O país torna-se grande investidor em atividades de pesquisa e desenvolvimento – P&D localmente desenvolvidas. As empresas nacionais, estatais e privadas, tornam-se investidoras internacionais. Estágio 5 – Declínio do crescimento econômico com níveis elevados de renda per capita. Tendência a formar blocos econômicos com outros países. Nesse sistema a graduação tecnológica e o consequente aumento da intensidade do capital assumem papel preponderante no desenvolvimento de um país. Sendo a Coreia do Sul uma das nações que se encaixam na teoria de Narula com mais exatidão, e não por acaso, pois foi ao estudar, entre outros, esse pequeno país asiático, que esse autor desenvolveu a teoria do Dynamic Economic Development Model. Segundo Guimarães (2010, p. 47) a Coreia do Sul: “[...] construiu um modelo econômico marcado por forte intervenção estatal. Consolidou-se uma relação muito próxima entre o Estado e os grupos empresariais, em que o primeiro, por meio de incentivos e sanções, procurou moldar uma estrutura industrial robusta e competitiva. O controle do setor financeiro deu ao Estado forte capacidade de promover os setores considerados estratégicos. Uma alta capacidade de monitoramento, propiciada por uma burocracia capacitada, garantiu que os incentivos fossem acompanhados de aumento de produtividade, elevação na competitividade e capacidade de exportação. Durante as décadas de 1960 a 1980, a implantação desse modelo levou a um rápido e bem-sucedido processo de industrialização”. Não houve descuido também com a questão educacional, sendo que a proporção dos gastos governamentais com educação passou de 2,5% para 23% entre 1951 e 1995 (MASSIERO, 2002). Empresas e famílias também participam desse esforço educacional que se tornou uma obsessão nacional. Desta forma, a população em idade universitária fazendo graduação pulou de 11% em 1970 para mais de 80% atualmente. O investimento em educação proporcionou a formação de engenheiros e cientistas necessários a Pesquisa Científica e ao desenvolvimento tecnológico. O número de cientistas e engenheiros multiplicou-se por 5 entre 1980 e 1990, sendo o maior crescimento do mundo nesse período (idem). Inicialmente a Coreia do Sul adotou a tática da transferência de tecnologia e da imitação, posteriormente começou a desenvolver elementos próprios, sobretudo componentes, como autopeças e componentes de informática. É claro que no primeiro momento havia certa defasagem tecnológica em relação aos países centrais, mas posteriormente, sobretudo a partir da década de 1990 do século XX, o país começou a tornar-se proeminente em Novos Estudos em Extremo Oriente 13 tecnologias de fronteira. Para tanto, contribuiu décadas de parcerias tecnológicas com países mais desenvolvidos como os EUA e Japão. A Função do Estado no Desenvolvimento Sul Coreano Ao contrário do que prega os teóricos do liberalismo, para que ocorresse o desenvolvimento econômico, o Estado da Coreia do Sul teve uma postura ativa, seja garantindo o financiamento do setor privado, investindo em P&D, etc., seja através de empresas estatais, como a POSCO – Companhia de Aço e Ferro Pohang. Em outras palavras, na Coreia foi estabelecido um estado desenvolvimentista que visava atenuar e/ou superar as deficiências do mercado, na tentativa de fomentar a industrialização e a graduação tecnológica. No entanto, nem todos os países que contaram com a intervenção do Estado na economia, conseguiram engendrar um processo de desenvolvimento econômico e social como o que ocorreu na Coreia do Sul e em outros países do sudeste asiático, como Taiwan: “Para cumprir esses papéis, são necessárias duas condições estruturais: primeiro, uma burocracia econômica capacitada, de seleção meritocrática e que siga carreiras que ofereçam retornos de longo prazo comparáveis com àquelas oferecidas pelo setor privado. Esta simples condição tem se provadoàs novas exigências (Spence, The search for modern China). As despesas da aristocracia e da corte manchu aumentaram significativamente nos últimos anos do governo de Qianlong (1736-1799), facto que arruinou irremediavelmente as finanças públicas. Para tentar inverter esta situação, o imperador centralizou o poder e procurou conciliar os interesses locais, regionais e centrais, que muitas vezes se opunham. No entanto, a nova estrutura político-administrativa revelou-se ineficaz, por falta de coordenação, excessiva e minuciosa regulamentação e ao grande atraso com que as decisões imperiais chegavam às províncias mais longínquas, facilitando assim o aumento da corrupção. Prova-o o facto de muitos cargos administrativos serem comprados, incluindo as magistraturas, procurando depois os seus titulares reaver o dinheiro investido. Por outro lado, o governo central também estava mal informado sobre a situação das províncias e a evolução das campanhas militares. Ao nível demográfico, entre 1741 e 1850 a população chinesa passou de cerca de cento e quarenta e três milhões para quatrocentos e trinta milhões (Hsu, The rise of modern China). À semelhança dos séculos anteriores, a terra pertencia a uma pequena elite, que possuía entre 50 a 60% das terras aráveis. Aproximadamente 10% das propriedades eram dos funcionários do Estado e apenas cerca de 30% estava na posse dos quase quatrocentos milhões de agricultores. Sendo assim, a esmagadora maioria dos camponeses não eram proprietários de terras e gastavam quase 50% da produção no pagamento das rendas. Estas eram pagas sobretudo em dinheiro, pelo que cerca de 30% do respectivo valor era desperdiçado no câmbio de sapecas de cobre, cada vez mais desvalorizadas, por moedas de prata. O crescimento da população e a Novos Estudos em Extremo Oriente 94 ausência de novos recursos contribuíram assim para a subida dos preços e para o empobrecimento geral da população. Por todas estas razões, a partir de 1795 começaram a surgir revoltas de camponeses no Noroeste da China e em Henan, Hunan e Guizhou e aumentou a pirataria nas costas do Guangdong e de Fujian (Fairbank, The great chinese revolution (1800-1985). Pelos mesmos motivos, no ano de 1796 deflagrou no Norte da China a rebelião camponesa do Lótus Branco, extinta em 1804, e reactivada entre 1811 e 1814, na bacia inferior do rio Amarelo, que contava com a cumplicidade de altos funcionários da Corte, também eles descontentes com a contenção financeira do imperador Jiaqing, sucessor de Qianlong. Estas sublevações foram controladas, mas as suas causas mais profundas continuaram bem vivas, nomeadamente a escassez de terras aráveis e o aumento das rendas. Nem mesmo os arroteamentos e a difusão de novas culturas, como o milho e o amendoim, conseguiram atenuar o problema. Não admira, por isso, que tenham aumentado as revoltas campesinas ao longo de toda a primeira metade do século XIX. Entre 1832 e 1833, por exemplo, o Sul da China, entre Hunan e Guangxi, foi devastado por grandes insurreições motivadas pela posse da terra. Em meados do século XIX as regiões chinesas mais densamente povoadas eram o delta do rio Yantze, os distritos do Norte e, no Sul, a região do Guangdong. Nesta última província, que forneceu maior número de emigrantes para Cuba e para o Peru, a população concentrava-se em pequenos vales, sobretudo entre o rio Si Kiang e os seus afluentes, Pei Kiang e Tong Kiang, que formam o delta do rio das Pérolas. Junto a estes rios existiam milhares de canais, diques e riquíssimas planícies aluviais que, no início da segunda metade do século XIX, faziam desta região uma das mais férteis de toda a China. Sendo assim, todas as parcelas de terra eram ínfimas e rigorosamente medidas. Uma família ocupava em média um hectare de terra arável, outras vezes apenas metade, ou até menos. Não eram criados animais para auxiliar nas actividades agrícolas porque a terra era demasiado rica para ser transformada em pastos, pelo que todo o trabalho era feito manualmente, com recurso a alfaias construídas pelos próprios agricultores. Nesta economia de subsistência não havia contratação de mão-de-obra, nem comercialização de produtos. A maior parte da população vivia em barcos e às vezes o espaço era até exíguo para os amarrar à terra. Se ocorresse algum desastre natural, formavam-se grupos de mendigos que procuravam alimentos noutras aldeias ou cidades, mas muitos sucumbiam à fome (Huc, L’empire chinois). Por outro lado, desde a primeira metade do século XIX que a sociedade chinesa, particularmente no Guangdong, estava a sofrer alterações devido à ambição dos comerciantes britânicos introduzirem o ópio no Império (Collis, Foreign Mud; Sheng, From the opium war; Fairbank, Trade and diplomacy; Osterhammel, «Britain and China (1842-1914)». A importação crescente desta Novos Estudos em Extremo Oriente 95 mercadoria ilegal, sobretudo a partir da década de 1830, criou uma complexa estrutura de relações e de novos empregos, como marinheiros, trabalhadores portuários, piratas, contrabandistas, traficantes e funcionários imperiais, que iludiam as proibições oficiais a troco de benefícios particulares. Porém, estas novas profissões não conseguiram de forma alguma resolver o problema do desemprego e da fome. Acresce que a generalização do consumo do ópio debilitou os organismos e diminuiu ainda mais os escassos orçamentos familiares. A pressão britânica para forçar a entrada desta mercadoria no Império levou a Grã-Bretanha e a China a envolverem-se, a partir de 1839, na chamada I guerra do ópio. Neste conflito, as forças imperiais foram incapazes de travar a progressão das potências ocidentais. Por outro lado, as milícias camponesas que se organizaram em 1841 em Cantão, e que reprimiram com êxito algumas pilhagens levadas a cabo pelos militares britânicos, foram desaprovadas pela administração local e central, com receio de que elas se revoltassem também contra os poderes estabelecidos. A contenda terminou em 1842, com a assinatura do tratado de Nanquim, que forçou a China a abrir ao comércio internacional os portos de Cantão (província de Guangzhou), Amoy, Nanquim, Ningbo e Xangai, a ceder Hong Kong à Grã-Bretanha, a pagar uma indemnização de 21 milhões de dólares de prata e a suprimir o monopólio do Cohong (associação comercial de Cantão que controlava o comércio com a Ásia do Sudeste, Índico e Europa). Este convénio abriu caminho ao tratado adicional de 1843, que impôs a favor da Grã-Bretanha o princípio da extraterritorialidade e a cláusula de nação mais favorecida. No ano seguinte, em 1844, a França e os Estados Unidos celebraram tratados idênticos com a China. A autoridade e o poder manchu ficaram desacreditados pela facilidade com que cederam às exigências ocidentais. Em virtude de o tratado de Nanquim não incluir medidas contra o tráfico do ópio, os comerciantes britânicos intensificaram a introdução desta droga no Império. Os pagamentos eram feitos em prata, facto que contribuiu ainda mais para esvaziar os cofres públicos e privados. Os preços de quase todos os produtos também subiram, principalmente no Sul da China, o prejudicou sobretudo as classes mais desfavorecidas, cujos impostos eram calculados com base na moeda de prata. À semelhança do que se passava internamente com a prata e o cobre, também o bimetalismo ouro – prata, usado à escala mundial, arruinou significativamente a economia chinesa no século XIX. Com a deslocação do eixo económico em direcção ao Norte, a região de Xangai adquiriu grande prosperidade em relação à de Cantão, tanto na distribuição do ópio como na comercialização do chá (Hsu, The rise of modern China). Esta recessão económica no Sul da China, particularmente no Guangdong, Guangxi e Hunan, provocou a ruína dos comerciantes que viviam nos arredores de Cantão e nas grandes rotas do interior, ao longo dos vales dos rios Xiang e Gan, que doravante ficaram sobcontrolo dos ocidentais. A venda dos escassos produtos agrícolas e manufacturados chineses também Novos Estudos em Extremo Oriente 96 baixou, devido às barreiras alfandegárias impostas pelos europeus. Esta decisão permitiu a introdução no Império, ainda que lentamente, dos excedentes da produção industrial do Ocidente. Como a China não tinha grandes indústrias para absorver o excesso de mão-de-obra agrícola e artesanal o desemprego subiu novamente. O Estado chinês, que a partir de 1843 enfrentava ainda maiores dificuldades financeiras, aumentou os impostos, reduziu os orçamentos das províncias e os salários dos seus funcionários. Estes factos levaram ao aparecimento de importantes seitas e sociedades secretas nas minas de carvão, como o Turbante Amarelo, Lótus Branco e Tríade. O governo encerrou as minas com receio de desordens, causando ainda mais desemprego. O espectro da fome levou muitos homens a vaguearem como moços de fretes, a dedicarem-se à pirataria nas costas do Guangdong, Fujian e Zheijiang, a entregarem-se ao banditismo, e a fomentarem sublevações em todo o Sul da China. Nas décadas de 1840 e de 1850 esta situação agravou-se devido às grandes calamidades naturais. Neste âmbito destaca-se a seca severa em Honan (1847) e as inundações ao longo do rio Yantze, que atingiram as províncias de Hupeh, Anhwei, Kiangsu e Chekiang. No ano de 1849 a fome extrema atingiu Kwangsi. Em 1852, as alterações no curso do rio Amarelo, próximo da foz, na zona de Shantung, provocaram grandes inundações e a devastação de terras e de culturas. Milhões de pessoas foram vítimas destes desastres, o que provocou mais sublevações populares. A maior e mais mortífera foi a revolta dos Taiping (Spence, God’s chinese son. The Taiping e Chesneaux, Movimientos campesinos en China (1840-1949). A rebelião iniciou-se em 1850, no Sul da China, na província de Guanxi. A inspiração cristã do líder, mesclada pelo budismo, taoísmo e maniqueísmo, que se opunham ao confucionismo da dinastia manchu, imprimiu ao movimento um carácter religioso. A ideologia Taiping alicerçava-se em objectivos igualitários, revolucionários e puritanos. As terras das regiões submetidas eram confiscadas e distribuídas de igual forma entre todos os que estavam em idade de as poderem cultivar. Ambicionava-se a criação de um regime sem propriedade privada e em que as necessidades básicas dos indivíduos seriam asseguradas pela comunidade. A industrialização e a melhoria dos transportes eram apontados como factores decisivos para o desenvolvimento económico. Nesta sociedade ideal, as drogas, o luxo e o jogo lucrativo eram proibidos. Não admira, por isso, que milhões de chineses desempregados e famintos tenham aderido a este movimento, quer como soldados, quer como simples seguidores. Foi por estes motivos que a rebelião alastrou rapidamente a todo o Sul, Sudeste e Leste da China. Em 1853 Xangai caiu em poder dos Taiping e tornou-se a sua capital. Inicialmente as potências ocidentais, nomeadamente a Grã-Bretanha e os EUA, apoiaram este movimento rebelde, pela sua política de não hostilização. Fizeram-no devido ao seu rápido avanço, à oposição que movia às forças Novos Estudos em Extremo Oriente 97 imperiais e às ligações que mantinha com o protestantismo. Beneficiando desta estratégia, usada entre 1853-1854, os Taiping avançaram em direcção ao Norte, mas fracassou a sua tentativa de conquistar Pequim, no ano seguinte. Enquanto o Sul e o Leste da China mergulhavam assim numa sangrenta guerra civil, a partir de 1856 a Grã-Bretanha e a França envolveram-se novamente num conflito militar com as forças chinesas para alargar e consolidar a sua presença político-económica no Império. Esta segunda guerra do ópio terminou em 1858, quando as tropas franco-britânicas ocuparam Tianjin. Seguiram-se os tratados assinados separadamente pela China com as potências beligerantes: Grã-Bretanha, França, EUA e Rússia. Estes convénios abriram mais dez portos ao comércio internacional. Os negociantes passaram a ter permissão para irem mais para o interior e Norte da China. Por este motivo, foram abertos quatro portos ao longo do rio Yangtze (Hankou, Jiujiang, Nanquim e Zhenjiang). Em simultâneo, foi aberto um porto na Manchúria, outro em Shandong, dois em Taiwan, um no Guangdong e outro na ilha de Hainan. Prevista estava também a possibilidade de os estrangeiros circularem livremente pelo Império. As dificuldades de ratificação dos tratados levaram, no entanto, as tropas anglo-francesas a entrar em Pequim em 1860. A partir desta altura, a China foi forçada a render-se definitivamente aos interesses ocidentais. Este avanço das forças estrangeiras no Império acentuou a degradação do Estado e agravou a crise social no Nordeste e na região atravessada pelo rio Yantze. O desemprego aumentou, facto que levou à deslocação de muitos chineses em direcção ao Sul, onde os ocidentais os aliciavam com propostas de emigração e de enriquecimento fácil. A partir de 1862, à semelhança do que aconteceu após a I guerra do ópio, as companhias de navegação britânicas e americanas dominavam o tráfego no rio Yangzi, na região entre Cantão e Xangai, que antes estava a cargo das embarcações fluviais e dos juncos chineses. Em 1872 Li Hongzhang criou a companhia chinesa de barcos a vapor, para tentar inverter esta tendência, mas as empresas ocidentais baixaram subitamente os preços e destruíram a concorrência. Quanto às promessas dos chefes Taiping, também não estavam a ser cumpridas. Fracassaram os projectos de desenvolvimento industrial e dos transportes e muitos dos pequenos e médios proprietários de terras estavam descontentes com a sua repartição. Por outro lado, o luxo em que viviam alguns dirigentes deste movimento começou a gerar grande descontentamento e hostilidade entre os seguidores. A partir de 1860, por incitativa da administração das províncias, dos letrados e com o apoio moral e material das elites, surgiram novos exércitos e chefes recrutados localmente, que lutaram contra os Taiping. Dois anos depois, as potências ocidentais, com receio de perderem o controlo das alfândegas de Xangai, apoiaram as tropas ao serviço do Império. Terminou desta forma, no ano de 1864, uma das maiores e mais sangrentas guerras civis da História, que matou pelo menos vinte milhões de pessoas (Chang-Rodriguez 1958/ Gernet 1991). Novos Estudos em Extremo Oriente 98 Apesar de extinta a revolta, permaneceram inalteráveis as causas que estiveram na sua origem e que continuaram a dar novo alento a outros levantamentos populares. Entre estes destacam-se: a rebelião dos Nian (1851-1868), no Norte, que colaboraram com os Taiping na tentativa falhada de tomar Pequim; a insurreição dos aborígenes em Guizhou (1854-1872); a agitação dos Miao no Sudoeste; as revoltas das comunidades muçulmanas do Noroeste, sobretudo nas províncias de Shenxi e Gansu (1855-1873) e que, ao contrário das anteriores, lutavam essencialmente contra a discriminação religiosa. Na sequência destas rebeliões, a economia chinesa foi gravemente afectada. A emergente zona industrial, desde Nanquim até Taihu e Hangzhou, conhecida também pelos seus centros intelectuais, foi em grande parte saqueada e destruída. Ultrapassada esta fase, foi necessário reconstruir as cidades, celeiros e diques e dar aos camponeses a possibilidade de adquirirem alfaias agrícolas, sementes e animais a preços mais acessíveis. Para evitar novas sublevações, o imperador viu-se obrigado a reduzir os impostos aos camponeses e a aumentar ligeiramente os tributos ao artesanato e à indústria. Porém, as finanças públicas arruinaram-se ainda mais e o comércio interno diminuiu. O alívio inicial da pressão demográfica, que resultou das guerras com o Ocidente e das rebeliões internas, não produziu o efeito esperado. A pobreza do Império acabou por favorecer os nobres e os grandes proprietários agrícolas, que viviam das rendas e dacomercialização dos produtos agrícolas. As alternativas encontradas por milhões de chineses famintos foram as migrações internas e a procura de novos destinos fora do Império. Com efeito, muitos foram primeiro para o Nordeste, para as regiões aráveis do Liaodong, e depois para o Norte, para as montanhas arborizadas e geladas. Alguns rumaram a Taiwan, para se dedicarem à agricultura, outros foram para o Sudoeste, onde tiveram que enfrentar as tribos hostis das montanhas, enquanto outros optaram pelas zonas fronteiriças do Vietname e da Birmânia, pelas terras áridas do Tibete ou ainda pelos vastos desertos de Xinjiang. Um número significativo de chineses migrou para as cidades em desenvolvimento, como Hankou, Xangai e Tianjin, onde as novas indústrias começavam a empregar alguma mão-de-obra. A longa de tradição de contactos comerciais entre os habitantes das províncias do Sul e os povos de outras regiões, nomeadamente de Java, Ceilão, Índia, Costa Arábica, Sul de África, Japão, Filipinas, Bornéu, Sumatra, Indonésia, Austrália, Singapura e Península de Malaca, fez com que muitos chineses emigrassem também para estas regiões. A convivência dos habitantes do Sul da China com os ocidentais levou-os desde a década de 1840 a ambicionar de forma crescente emigrar para os seus países ou colónias. Este desejo correspondia também à necessidade crescente de mão-de-obra barata que era particularmente sentida pelos fazendeiros de Cuba, do Peru e da costa Oeste dos Estados Unidos da América. Novos Estudos em Extremo Oriente 99 Esta emigração começou em Amoy em 1847, mas foi Macau, território sob administração portuguesa, que se tornou entre 1851 e 1874 o seu principal porto de embarque. Nesta cidade foi montada uma complexa estrutura, constituída por uma rede consular, agentes das casas importadoras, engajadores, funcionários do governo, donos de armazéns, entre outros, que colaboraram activamente neste sistema. Em Cuba, desde 1820 os escravos começaram a escassear e os preços subiram nos mercados da ilha, devido aos movimentos abolicionistas britânicos, às frequentes doenças e à elevada mortalidade. Desde 1847 que a mão de obra chinesa representava uma alternativa para responder às exigências das grandes plantações e dos engenhos de cana-de-açúcar, numa tentativa de evitar o aumento dos preços, e desenvolver novas obras públicas. No Peru também havia grande necessidade de mão de obra, devido às doenças dos escravos, à sua escassez e encarecimento no mercado e posterior libertação. Os chineses destinavam-se à exploração do guano, à produção da cana-de-açúcar e de algodão, produtos que eram solicitados de forma crescente pelo mercado europeu, e à construção dos caminhos de ferro. Mais de 250 000 chineses assinaram contratos de oito anos, o que na prática era sinónimo de semi-escravidão, dos quais a maior parte se libertou com muita dificuldade. Aqueles que conseguiram fazê-lo abriram os seus negócios e integraram-se lentamente nas sociedades locais, mas poucos conseguiram regressar à China. Referências Maria Teresa Lopes da Silva é Professora - Doutoranda na FLUL (Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) CHANG-RODRIGUEZ, E., «Chinese Labour Migration into Latin America in Nineteenth Century», Revista de História da América, Vol. 46, Dezembro de 1958, Instituto Panamericano de Geografía e Historia, México, pp.375-397. CHESNEAUX, Jean, Movimientos campesinos en China (1840-1949), siglo XXI, Madrid, Siglo XXI, 1978. 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Novos Estudos em Extremo Oriente 101 COMÉRCIO TRANSPACÍFICO: O JAPÃO COMO IMPORTADOR DE PRODUTOS DE PRODUTOS MINERAIS DO BRASIL por Matheus Henrique da Silva Alcântara e José Otávio Aguiar O Império do Japão na década de 1930 incluía um vasto e complexo território, a parte principal eram as quatro ilhas (Hokkaido, Honshu, Shikoku, e Kyushu), sendo a maior delas Honshu, onde estavam localizadas as suas principais cidades e centros industriais. Ao norte estendia-se até a parte sul da ilha de Sakhalina (Sacalina), e ao sul até a ilha de Formosa (também conhecida como Taiwan), bem como diversas pequenas ilhas no Oceano Pacífico. Além destes territórios a bandeira do sol nascente também administrava as antigas colônias alemãs do Pacífico, deste o fim da Grande Guerra. Em sua corrida imperialista na Ásia, o Japão controlava diretamente a península coreana desde 1910, e a região nordeste da China, conhecida como Manchúria onde estabeleceu um estado fantoche em 1932. Esse expansionismo colonial se deveu em grande parte a “consciência de vulnerabilidade” que permeava a administração japonesa, devido á falta de recursos minerais, e o controle do comércio e importações no Oceano Pacífico nas mãos de potências estrangeiras, segundo Eric Hobsbawn (1995): “Mas o Japão, cuja industrialização avançava a passos largos, embora em tamanho absoluto a economia ainda fosse bastante modesta – 2,5% da produção mundial no fim da década de 1920 -, sem dúvida achava que merecia uma fatia maior do bolo do Extremo Oriente do que as potências imperiais brancas lhe concediam. Além disso, os japoneses tinham uma aguda consciência de vulnerabilidade de um país ao qual faltavam praticamente todos os recursos naturais necessários a uma economia moderna, cujas importações estavam á mercê de interferências de marinhas estrangeiras, e as exportações á mercê do mercado dos EUA. A pressão militar para a criação de um império territorial próximo na China, dizia-se, logo encurtaria as linhas de comunicação japonesas, e assim as tornaria menos vulneráveis”. (HOBSBAWN, 1995, p. 44) Para compreendermos este complexo paradigma que é a expansão japonesa no continente asiático, é necessário retornar ao período de abertura econômica durante a Era Meiji(1868-1912) que resultou na retomada das relações políticas e econômicas do povo japonês com o exterior, bem como proporcionou o Novos Estudos em Extremo Oriente 102 processo de industrialização do país, através da aquisição de tecnologia, substituição das importações, e ampliação do mercado consumidor interno e externo. No início do século XX, o Japão havia se transformado no único país industrializado do Leste Asiático, tornando-se exportadorde capitais, como o governo e empresas privadas investindo em outros países da região (MIYAZAKI,2009). Segundo o economista Silvio Yoshiro Mizuguchi Miyazaki, o processo de industrialização do Japão começou com o estabelecimento do Ministério da Indústria em 1870, e com a construção de uma indústria de base, fundamentada na extração mineral: “O governo promoveu a industrialização por meio de medidas tais como o estabelecimento do Ministério da Indústria em 1870, a importação de tecnologia do exterior e o investimento na indústria. Em 1874, foi estabelecida a primeira mina de carvão e outras oito foram desenvolvidas; em 1881, investiu-se numa moderna forma de extração de minério de ferro e foram construídas uma fábrica de máquina-ferramenta em 1871, uma planta de cimento em 1875, uma fábrica de vidro em 1876 e uma de tijolos em 1878, além de fundições e minas de ouro e prata”. (MIYAZAKI, 2009, p. 23) A Guerra Russo-Japonesa e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) estimularam a expansão territorial e econômica japonesa, a primeira resultou na anexação de territórios chineses e da península coreana a órbita de Tóquio, enquanto a segunda promoveu o aumento da produção de bens manufaturados, e a abertura de novos mercados consumidores no continente americano; devido á interrupção das exportações dos países europeus imersos no conflito, bem como ganhos territoriais com a concessão aos japoneses das áreas até então controladas pelos alemães no Leste Asiático. O Japão empreendeu um processo de industrialização de suas colônias, com a construção de ferrovias, e o estabelecimento de empresas de extração mineral e metalurgia, pois a proximidade geográfica favorecia a industrialização nacional japonesa, que carecia de matéria-prima para abastecer suas indústrias: “Mas mesmo governos imperiais podiam ter motivos para industrializar suas colônias, embora o único caso em que isso tivesse sido sistematicamente feito fosse pelo Japão, que desenvolveu indústrias pesadas na Coreia (anexada em 1911) e, depois de 1931, na Manchúria e Taiwan, porque essas colônias ricas em recursos ficavam suficientemente próximas da pátria exígua e notoriamente pobre em matérias-primas para servir diretamente á industrialização nacional japonesa”. (HOBSBAWN, 1995, p.204) Deste modo, a expansão territorial japonesa permitiu a expansão do mercado consumidor de bens industrializados, enquanto os países anexados forneciam matérias primas para sua indústria. Como consequência a nação japonesa transmutou-se em uma das grandes potências, destacando-se nos setores militar, industrial e de colonização. Para movimentar está robusta máquina em Novos Estudos em Extremo Oriente 103 expansão, os japoneses necessitavam de matérias-primas. De acordo com o estudo de Luciano Jacques de Moraes, então diretor do Departamento Nacional de Produção Mineral em 1940, o Japão apresentava um quadro crônico de carência dos principais produtos minerais essenciais para o abastecimento da indústria nacional japonesa, o que fundamenta em parte do seu desejo colonial: Figura 1º: Autossuficiência das grandes nações em recursos minerais. Autor: Luciano Jacques de Morais- DNPM. Fonte: Coleção Revista de Mineração e Metalurgia nº21 Maio-Junho de 1940, p.11. Os recursos minerais do Japão e colônias incluíam carvão e ferro em abundância, que o colocava respectivamente sexto lugar na produção mundial de carvão e aço, contudo, o acelerado processo de industrialização necessitava da expansão da oferta de matérias-primas minerais. Procurando sanar a falta de matéria-prima o país recorre-se a importação para suprir as necessidades de sua indústria. Por exemplo, os minérios de ferro, mica, manganês, níquel, cobre, entre outros; que eram importados de suas colônias, ou de outros países, como Índia Britânica, Austrália, Rússia, China e até mesmo no Chile. Com relação ao Brasil, o Japão era um grande importador de cristais de quartzo. No início do século XX, cidade de Kofu na província de Yamanashi se estabeleceu uma prospera indústria de extração, beneficiamento e lapidação de quartzo para fins ornamentais, com mais de 120 pequenas empresas, cujo material era exportado para os mercados consumidores dos Estados Unidos e de alguns países da Europa. Contudo a matéria-prima existente não era suficiente para atender a demanda conjunta das indústrias de ornamentos, de equipamentos radioelétricos, e ótica então em ascensão. Novos Estudos em Extremo Oriente 104 Em 1918, a firma Shinohara Shokai realizou sua primeira encomenda de cristais de quartzo do Brasil, em 1930 o país era responsável por mais de 80% do fornecimento deste mineral para o Japão. O quartzo brasileiro provinha principalmente dos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, como também da Paraíba, de onde era extraído nos arredores do distrito de Pedra Branca, no município de Picuí pela firma de Manoel Francisco Monteiro. Segundo Raul Boop, então Cônsul do Brasil em Yokohama (1935-1938), havia um triângulo comercial entre o Brasil, Japão e Estados Unidos com relação ás peças de quartzo: “No período de 1926 a 1931, cêrca de 80% do cristal importado pelo Japão e em especial do Brasil era aplicado na confecção de colares de cristal, que tinham grande colocação nos Estados Unidos, chegando a uma média de exportação anual de.... 1.800.000 yen”. (BOOP, 1938, p. 87) Após a crise de 1929, as vendas de peças ornamentais e colares declinaram rapidamente, atingindo em peso a indústria de Kofu, e diminuindo drasticamente as importações. Todavia, na mesma época o quartzo passou a ter utilização industrial em larga escala, na fabricação de artigos óticos, equipamento radioelétricos e até mesmo na metalurgia. Duas empresas japonesas se destacaram neste setor, Meisho Denko e Tóquio Denki, na produção de equipamentos para os departamentos do exército e marinha. Isto provocou a retomada das importações de cristal de quartzo, especialmente brasileiro para atender a nova demanda. Essa dinamização do sistema industrial japonês deve-se em grande parte a uma economia capitalista não liberal, coordenada pelas forças militares imperiais em um esforço conjunto para empreender seu aparelhamento bélico. Gráfico 1º: Exportação brasileira de cristais de quarzto para o Japão (1934-1937). Fonte: Revista Brasileira de Mineração e Metalurgia (1936-1950) Ao analisarmos os dados presentes no gráfico, podemos perceber a existência de um lucrativo e intrincado comércio mineral que envolvia o Brasil e o Japão, com relação á produção e consumo de cristais de quartzo que se manteve estável até a declaração brasileira de rompimento diplomático com os países do Eixo em 1942. Em 1938 dois engenheiros de minas japoneses, Yoshio Novos Estudos em Extremo Oriente 105 Tsuboi e Yaozo Fukihara, representantes respectivamente da Sumitomo Minig Co. e da Mitsubishi Minig Co., desembarcaram no Brasil em missão especial para promover um estudo sobre as possibilidades minerais e comerciais do Brasil, sendo recepcionados pelo pessoal técnico do DNPM e Luciano de Jacques de Moraes. Entre 1938 e 1939, o acirramento das disputas europeias provocadas pelo expansionismo alemão na Europa e o japonês na Ásia, despertou o temor nos Estados Unidos sobre a possibilidade de serem privados de recursos minerais importados dos respectivos continentes bem como de seus mercados consumidores. O congresso norte-americano ordenou a aquisição de reservas de minerais e metais cujo abastecimento doméstico era considerado insuficiente para atender a demanda industrial e militar, e, portanto, deveriam ser importados. Ficando o Departamento de Guerra dos Estados Unidos responsável pela formulação e classificação destes materiais essenciais em três categorias: a) materiais estratégicos: são aqueles que as fontes de abastecimento se encontram total ou parcialmente no estrangeiro, e não há estoque suficiente parasuprir a demanda de consumo; b) materiais críticos: são aqueles que podem ser obtidos no país, mas que necessitam de uma complementação; c) materiais essenciais nem estratégicos nem críticos: são aqueles materiais os quais o país apresenta reservas consideráveis, mas que devem ficar sobre vigilância, pois poderão ser reclassificados. Entre esses minerais estava o quartzo, que passou a desempenhar um papel cada vez mais importante na indústria bélica, devido a sua utilização na fabricação de lentes piezoelétricos fundamentais para a construção de equipamento de ondas ultrassônicas, como radares, sonares e rádios de comunicação. Os Estados Unidos consideravam a expansão do Japão, como uma extensão do poder do Eixo no Sudoeste Asiático, que era uma importante área de comércio para as indústrias norte-americanas. O que resultou na adoção de severas sanções econômicas sobre o Japão, afetando o comércio, indústria e abastecimento que dependiam em grande parte das comunicações marítimas. Esta disputa procedeu no ataque japonês a base naval norte-americana de Pearl Habor no Havaí, em 7 de dezembro de 1941, e a expansão dos japoneses no Sudoeste Asiático. O que abalou sensivelmente o triângulo comercial que existia entre os três países entorno da exploração, processamento e consumo e objetos e instrumentos eletrônicos construídos com base em cristais de quartzo. O comércio transoceânico entre o Brasil e o Japão continuou durante os anos de 1940 e 1941, quando exportamos respectivamente 446,926 e 310,702 toneladas de cristais de quartzo para fins industriais para a nação japonesa. Além disso, o Brasil continuou a exportar quartzo, mica, chumbo, entre outros minerais para o Japão até o primeiro semestre de 1942, quando se tornou insuportável á pressão norte-americana para que o Brasil entrasse no conflito ao lado dos Aliados. No espírito de promover a cooperação entre os Estados Unidos e as repúblicas latino-americanas, é realizado o 1º Congresso Pan-Americano de Engenharia de Minas e Geologia realizado em Santiago (Chile), entre os dias 15 e 24 de Novos Estudos em Extremo Oriente 106 janeiro de 1942, onde compareceram 16 delegações oficiais, incluindo a brasileira. Este congresso atuou no estreitamento das relações políticas e comerciais entre as nações presente, resultando na construção de um programa de produção mineral para a defesa do hemisfério, que em grande parte privilegiava a importação de minerais essenciais á indústria bélica norte-americana, mas que em contrapartida permitiria aos países latinos a preferência na importação máquinas e matérias primas destinadas á indústria mineira e metalúrgica. O que em tese representou o esforço americano em estruturar seu suprimento de matéria prima mineral durante a guerra, em troca de maquinarias essenciais para a indústria de base. O rompimento diplomático do Brasil com o Japão viria apenas em 28 de janeiro de 1942, na III Reunião dos Chanceleres Americanos onde o Brasil, sobre grande comoção pelas vítimas do ataque de Pearl Habor e dos naufrágios de navios mercantes brasileiros causados por submarinos alemães, cessa relações diplomáticas e comerciais com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Este ato aproximou o governo brasileiro dos norte-americanos, sendo selada sua aliança política e econômica com quando da assinatura dos Acordos de Washington, neste conjunto de documentos, assinados em 3 de março, previam a cooperação econômica e militar entre o Brasil, os Estados Unidos da América, e o Reino Unido. Entre os acordos firmados em Washington, ficou firmado que o Brasil também exportaria outros minérios, com cotas de exportação para os dois próximos anos (1941-1942), e estes produtos seriam comprados pela Metal Reserve Corporation em conjunto com a Rubber Reserve Corporation. Entre esses minerais podemos citar: minério de berilo (1.600t/ano); cromita (6.000t/ano); diamantes industriais (300.000quilates/ano); minério de manganês (500.000t/ano); mica (2.000t/ano); quartzo (2.000t/ano); rutílo (800t/ano); zircônio (1.600t/ano) (ABREU, 1999, p. 343-349). Que apesar de serem exportados em grandes quantidades para os Estados Unidos e Reino Unido, não atingiram as metas estipuladas, devido falta de mecanização dos processos de exploração mineral no Brasil, em conjunto com ausência de infraestrutura para o transporte. Em 31 de agosto de 1942 o governo de Getúlio Vargas declara estado de guerra em todo o território nacional, declarando guerra á Alemanha nazista e a Itália fascista. Em troca o Brasil recebeu apoio econômico para a criação de estatais, e deveria incentivar a extração mineral no território brasileiro, para atender a demanda dos mercados bélicos das duas nações. Como consequência o governo brasileiro decidiu estatizar a Companhia Brasileira de Mineração foi ratificado pelo Decreto-Lei nº 4.352, de 1º de junho de 1942. O documento também previa a criação de uma empresa de caráter misto, entre o governo americano e brasileiro, denominada de Companhia Vale do Rio Doce S.A., que além das minas da Companhia Brasileira de Mineração, possuía também a sua estrada de ferro Vitória-a-Minas. Além disso, previa indenizações aos acionistas, na forma de títulos da nova empresa, ou Novos Estudos em Extremo Oriente 107 monetariamente pelo Tesouro Nacional. A mesma empresa possuiria capital inicial de 200 milhões de cruzeiros (BASTOS; FONSECA, 2012). O alinhamento com os Estados Unidos proporcionou o incremento da atividade de exploração mineral em todo o território nacional que passou a ser analisado e pesquisado pelos técnicos do DNPM, em busca dos minerais-estratégicos, matérias primas considerados essenciais para o esforço de guerra norte-americano que incluía em sua lista, o minério de quartzo para a produção de lentes e equipamentos radioelétricos. De acordo com a tabela a seguir, há aumento na exportação deste minério para os países aliados e sua diminuição quando finda a guerra. Figura 2º: Exportação Brasileira de Quartzo. Fonte: Coleção Revista de Mineração e Metalurgia nº64 outubro de 1946, p. 227. Por fim, um peculiar fato sobre a relação entre os dois países, é que o Japão não foi incluído na declaração de guerra de 1942, período no qual os dois países experimentaram um rompimento das relações diplomáticas e econômicas sem animosidade militar, que caracterizou a reação brasileira contra os alemães e italianos. Somente no dia de 5 de junho de 1945, no final da guerra, o Brasil decide participar efetivamente da guerra do Atlântico contra os japoneses. Considerações finais Em linhas gerais, a concessão de empréstimos á longo prazo, aumento das exportações brasileiras para o mercado estadunidense (especialmente de matéria-prima mineral), e o estreitamento das relações comerciais entre os dois países, corresponde aos desígnios do capitalismo estadunidense de promover uma maior presença no mercado latino-americano, sob a capa da Política da Boa Vizinhança, financiando projetos criação de uma indústria de base dirigida pelo Estado. Pois, apesar da aparente perda no comércio de tradicionais produtos manufaturados (tais como aço, laminados, folha de Flanders, entre Novos Estudos em Extremo Oriente 108 outros) enviado ao Brasil, houve o aumento das exportações de máquinas, equipamentos pesados e suprimentos necessários a nascente indústria. Deste modo, a busca pelos minerais estratégicos, pelos países em conflito (em especial pelos Estados Unidos) levou a uma expansão das atividades de mineração por todo o país, tornando os produtos desse segmento da economia, em um dos alicerces das exportações brasileiras nos anos vindouros. Como consequência desses eventos, o governo conseguiu o crédito necessário para financiar a indústria nacional. A análise dos dados documentais remanescentes do comércio transoceânico entre o Brasil e Japão na década de 1930 e 1940 representa para o historiadorum paradigma privilegiado de observação das trocas entre os dois países durante o período de rearmamento e de guerra. Dividido entre a adesão ao apoio das posições estratégicas dos Estados Unidos no período final da Segunda Grande Guerra e seus interesses comerciais durante o Estado-Novo, principalmente os países de regime totalitário na Europa. O Brasil oscilou estrategicamente sem tomar partido, para não afetar o comércio de exportação de produtos minerais. Infelizmente devido á falta de dados completos sobre o comércio entre os dois países somos impossibilitados de estabelecer um quadro mais aprofundado sobre os impactos da paralização das exportações brasileiras para o Japão. A luz de novos documentos proporcionará debater á possível retomada deste comércio após a guerra mundial, com o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países em 1952, quando entra em vigor o Tratado de São Francisco, reestabelecendo a soberania do Japão. Essa retomada das relações entre os dois países marca uma fase, na qual o fator econômico, estimulado pelo crescimento da economia japonesa, adquire maior importância. O crescimento econômico japonês impulsionou realização de investimentos diretos no exterior pelas empresas nipônicas. Um fator que contribuiu para o aumento dos empreendimentos japoneses no Brasil durante a década de 1950. Foi o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que proporcionou um clima de crescimento econômico no país, estimulando fluxos de capitais japoneses novamente para o Brasil. Referências Autor: Graduado no curso de licenciatura em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Atualmente aluno do curso de pós-graduação de Mestrado em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Coautor: Doutor em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003), e Pós-Doutor em História, Relações de Poder, Sociedade e Ambiente pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Atualmente professor da Universidade Federal de Campina Grande–PB, lecionando na Graduação, bem como nos Programas de Pós-Graduação em História (Mestrado) e Recursos Naturais (Mestrado e Doutorado interdisciplinar). Novos Estudos em Extremo Oriente 109 ABREU, Marcelo de Paiva. 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Novos Estudos em Extremo Oriente 111 IMBRICAÇÕES ENTRE HISTÓRIA INDIANA E CULTURA HINDU: O CASO LITERÁRIO DO RĀMĀYAṆA DE VĀLMĪKI por Matheus Landau de Carvalho A cultura hindu se destaca no cenário mundial por constituir um dos mais antigos e dinâmicos conjuntos de tradições culturais da humanidade ainda existentes. Através, principalmente, de suas expressões religiosas, é possível visualizá-las como manifestações histórico-culturais que começaram, de maneira mais recorrente, a ser classificadas como “hindus” em si por islamitas que habitavam a região da Pérsia como uma designação religiosa que diferenciasse os muçulmanos aquém do rio Indo [em sânscrito sindhu, lit. “mar”, “oceano”] dos não-muçulmanos que habitavam além do mesmo rio. Após o estabelecimento soberano dos muçulmanos sobre grande parte do subcontinente indiano, os britânicos se apropriaram, a partir do século XVIII, destes termos como denominadores comuns para se referir a vários segmentos religiosos distintos entre si então presentes na região, contribuindo para sua divulgação e uso amplamente estabelecidos [Rodrigues, 2006, p. 4]. Por tradições hindus será entendido aqui um conjunto de expressões culturais singulares que tendem a se adequar às diversidades regionais, históricas, individuais e comunitárias oriundas do subcontinente indiano, segundo uma pluralidade de tradições com suas comunidades de praticantes, seus sistemas de atos, seus conjuntos de doutrinas e seus processos de sedimentação de experiências, revelando uma flexibilidade e uma abertura acostumada à coexistência de opostos nas esferas ritualística [yajña], gnóstica [jnāna] e mística [bhakti]. [cf. Carvalho, 2017, p. 234, n. 3].Um dos pontos dinâmicos de polissemia cultural das tradições hindus é uma de suas quatro aspirações fundamentais da condição existencial humana [puruṣārthas], o dharma, que refere-se originalmente ao sustentáculo cosmogônico primevo e seu equivalente no ritual humano, assim como a extensão do ritual à esfera das normas sociais e éticas: “Manter a estrutura e as divisões básicas do mundo natural e social, e manter a identidade própria de alguém num sistema de equilíbrio mútuo – isto é no mínimo parte do escopo semântico de dharma, e é provavelmente parte de seu sentido mais antigo e original.” [Halbfass, 1991, p. 389]. A partir da mesma raiz verbal – dhṛ como “apoiar”, “sustentar”, “manter em equilíbrio” – Ludo Rocher [2003, p. 102] aponta para o dharma como aquilo que prevê a maneira correta de se manter a ordem e o equilíbrio do universo de Novos Estudos em Extremo Oriente 112 modo geral: desde que cada elemento no cosmos se comporte de acordo com seu dharma, o equilíbrio em seu todo é mantido; desde que cada elemento no cosmos de desvie de algum modo de seu dharma, acarreta determinado adharma e perturba o equilíbrio em seu todo. Esta sintonia entre microcosmo e macrocosmo reflete-se no âmbito do ser humano através da noção de que o dharma governa todo aspecto e toda atividade na vida de um hindu ao englobar uma gama de deveres éticos, familiares e sociais segundo uma conduta apropriada [ācāra] para diversos contextos, e pressupor a realização de rituais védicos [yajñas] por parte do indivíduo, segundo os respectivos fins soteriológicos previstos pela cultura hindu. As demandas do dharma hindu estão refletidas em textos sagrados das tradições védicas agrupados e organizados de acordo com uma classificação tradicional de origem indiana, em duas grandes categorias, que no idioma sânscrito recebem as denominações de śruti e de smṛti. Śruti – lit. “o que é ouvido” – é um conjunto de textos ligados à transmissão oral, que não data a um período particular, mas atravessa a história das tradições hindus. É um corpus de ensinamentos de transmissão discipular que propicia uma relação direta e imediata com o conhecimento e a experiência contidos nos textos fundamentais das quatro tradições ritualísticas e filosóficas dos Vedas, quais sejam, o Ṛgveda, o Sāmaveda, o Yajurveda e o Atharvaveda. Smṛti – lit. “o que é lembrado” – poderia ser classificado como um conjunto de textos que estabelecem uma relação indireta, preliminar, mediada com o conhecimento védico, um corpus de ensinamentos que serviriam como um encaminhamento introdutório ao śruti, apesar de não o constituírem e serem considerados como secundários em autoridade, configurando uma parte significativa destes textos que refletem diretamente as demandas do dharma hindu. A noção de smṛti na cultura hindu é consideravelmente ampla, sendo encarada, na maioria dos casos, como a literatura composta por seres humanos e transmitida como tradição através das gerações. [Rodrigues, 2006, p. 37, itálicos da autora]. A compreensão de smṛti pode se estender, entre outras expressões orais e escritas, a um vasto corpus literário de narrativas védicas, cujos textos são tradicionalmente classificados como Purāṇas – “estórias do passado remoto”, “contos antigos” – ou como Itihāsas – do sânscrito iti ha āsa, “assim realmente foi”, “assim de fato aconteceu” –, de modo que estes termos sânscritos denominam toda esta tradição textual hindu como tradição Itihāsa-Purāṇa, “conhecida como o ‘quinto Veda’, embora ela seja classificada como smṛti, textos de autoria humana, e não śruti, revelação” [Flood, 1996, p. 104, itálicos do autor]. A tradição textual Itihāsa-Purāṇa, composta majoritariamente do século V A.E.C. até o fim do primeiro milênio E.C., é um reflexo bastante plural de tradições confessionais do subcontinente indiano, fruto do desenvolvimento da adoração a divindades particulares, dando ensejo ao culto devocional [pūjā] como expressão singular do amor ou devoção [bhakti] a uma deidade hindu específica, principalmente a Viṣṇu, Śiva e Devī – sob suas mais variadas formas e denominações –, e que ainda desempenham um papel crucial na vida Novos Estudos em Extremo Oriente 113 hindu contemporânea, sendo transmitida de geração em geração [Flood, 1996, pp. 103-104; Rodrigues, 2006, p. 189]. Além disso, as fontes escritas da tradição Itihāsa-Purāṇa compartilham do mesmo padrão estilístico de composição textual, pois são compostas na mesma métrica poética sânscrita dos ślokas. Esta religiosidade bhakti se colocava, de certo modo, como uma dinâmica proposta de maior maleabilidade em relação a uma certa religiosidade ortodoxa essencialmente centrada no ritual védico [yajña] e imbuída de inúmeras restrições de cunho social. Com determinada abertura inclusiva para a participação de mulheres e alguns setores sociais hindus no ritualismo védico, entre outras questões, “Bhakti também estava forjando uma relação entre a devoção teísta e a obtenção de mokṣa. Os Purāṇas descrevem e expandem as vidas e linhagens de deuses e seres humanos, tentando conectar as particularidades dos cultos regionais em um esquema abrangente de um cosmos permeado por uma divindade específica, identificada como o Védico, o Absoluto. Assim, várias divindades são encadeadas no esquema dos avatāras de Viṣṇu […], e várias deusas são fundidas na persona da Grande Deusa, a Mahādevī […]. A família de Śiva incorpora divindades como Skanda, Gaṇeśa e certas deusas, como Pārvatī e Satī.” [Rodrigues, 2006, p. 190, itálicos da autora] Em geral, por Itihāsa compreende-se duas textualidades sânscritas com uma enorme extensão redacional, i.e. o Mahābhārata e o Rāmāyaṇa, cada uma calcada em pelo menos duas recensões originais básicas, cujo tema hindu por excelência é o dharma. Um dos objetivos doutrinários e estilísticos dos Itihāsas é justamente uma exposição propedêutica, pedagógica dos preceitos deste mesmo dharma hindu. No contexto semântico do termo sânscrito composto Rāmāyaṇa, Rāma é um dos avatāras de Viṣṇu e o herói protagonista da narrativa, ao passo que ayaṇa pode designar tanto o ato de prosseguir, mover-se, andar, quanto o próprio caminho, o percurso, a estrada em si [cf. Apte, 1970, p. 48c; Monier-Williams, 1899, 84b]. Portanto, por Rāmāyaṇa entende-se as vicissitudes pelas quais passou Rāma durante seu percurso neste mundo enquanto um avatāra de Viṣṇu. Ainda que consigam extravasar qualquer pertencimento restrito a uma tradição particular, há plausibilidade suficiente para se dizer que os Itihāsas possuem, num primeiro momento, uma orientação vaiṣṇava, isto é, cuja religiosidade está centrada no culto devocional a Viṣṇu [Flood, 1996, p. 104] que, no caso específico dos Itihāsas, encontra nos avatāras Kṛṣṇa e Rāma suas expressões mais proeminentes. O Rāmāyaṇa de Vālmīki seria uma das versões textuais ampliadas da narrativa básica, nuclear, original da estória de Rāma, a Rāma-kathā – do sânscrito kathā, um conto, uma estória, um relato [Apte, 1970, p. 131a; Monier-Williams, 1899, p. 247; Wilson, 1819, p. 151a] –, ou seja, o enredo que conta o casamento de Rāma com Sītā, o exílio subsequentemente enfrentado pelos Novos Estudos em Extremo Oriente 114 dois na mata indiana, o rapto de Sītā pelo líder das criaturas demoníacas [rākṣasas], Rāvaṇa, e a batalha contra Rāvaṇa, com a consequente vitória de Rāma, que reconquista sua amada de volta e retorna para sua terra natal, a cidade de Ayodhyā, para governar o reino de Kosala, no norte do subcontinente indiano. Quando esta Rāma-kathā é desenvolvida e ampliada a ponto de se constituir numa versão da estória de Rāma, a respectiva versão, em geral, recebe o nome do autor ao qual se atribui a sua autoria – como no caso de Vālmīki, daí o épico sânscrito, cuja autoria a cultura hindu lhe atribui, ser identificado como o “Rāmāyaṇa de Vālmīki” –, de modo que todas as versões desenvolvidas em diferentes idiomas, estilos,e meios de expressão estética a partir da Rāma-kathā constituem o que recorrentemente é denominada a “tradição textual do Rāmāyaṇa”. Com efeito, Rāmāyaṇa não é apenas uma estória, mas uma verdadeira tradição plural de contar e recontar, de maneiras diversas, as vicissitudes pelas quais passou Rāma em sua trajetória neste mundo. O Rāmāyaṇa de Vālmīki, especificamente, é o desdobramento da narrativa da Rāma-kathā mais influente na língua sânscrita. Tanto textos em sânscrito quanto textos devocionais em línguas regionais compartilham, senão de todas, pelo menos da maioria das características que possuem em comum, pois são geralmente atribuídos a poetas particulares, compostos em gêneros literários estilisticamente elaborados, inicialmente recitados em contextos reduzidos, tais como ambientes palacianos ou religiosos. A polissemia adquirida pelo dharma hindu na textualidade do Rāmāyaṇa de Vālmīki é o reflexo de um período superior a um milênio de sua composição [do século VI A.E.C. ao século XII E.C.], durante o qual os desdobramentos semânticos do respectivo dharma foram desenvolvidos, muito em função dos objetivos doutrinários dos seus vários redatores, visto que “as nuances particulares em seu significado se alternam com a mudança de atitude dos transmissores do texto ao longo dos séculos” [Brockington, 2010, p. 246]. Duas experiências político-culturais que mais se aproximaram de uma abrangência pan-indiana foram decisivas neste processo, i.e. a dinastia Maurya (320 A.E.C.-185 A.E.C.) e a dinastia Gupta (320 E.C.-497 E.C.). O estudo da dinastia Maurya é necessário pela possibilidade que nos oferece de entender como um conceito central para os budistas – dharma, na forma de dhamma – foi apropriado por um governante, Aśoka Maurya, enquanto uma ideologia cultural que superasse os contextos locais de seu império, assim como de que modo este contexto teria induzido à elaboração de uma vasta literatura hindu – dentre outros, os Itihāsas – que, pela primeira vez, tivesse se apropriado deste conceito como central em seu escopo. Segundo Romila Thapar, a dinastia Maurya tendia a um ecletismo confessional das seitas heterodoxas, principalmente dos jainistas, dos ājīvikas e dos budistas, e, a partir das necessidades de unificação do império, Aśoka lançou mão de um conjunto de princípios influenciados por ideias e conceitos intelectuais e religiosos correntes em seu tempo – principalmente o dhamma –, um tempo no qual as almas dos leigos para os quais tais ideias religiosas já não eram mais Novos Estudos em Extremo Oriente 115 constituídas exclusivamente por nobres instruídos, mas também por cortesãos, oficiais letrados, camponeses e pequenos burgueses; e os príncipes, sacerdotes e monges, por sua vez, interessavam-se na maneira pela qual as necessidades religiosas se encontravam na sociedade [Weber, 1958, p. 236]. Para além disso, pesquisadores da história das tradições hindus, em geral, afirmam que o primeiro milênio E.C. testemunhou o impacto de perspectivas religiosas alternativas no subcontinente indiano, dedicadas a um tipo de cultura soteriológica sintonizada não apenas com buscas mais individualizadas de devoção [bhakti] a uma deidade hindu específica – notadamente Viṣṇu e Śiva –, mas também com práticas ascéticas mais particularizadas da yoga, ambas mais refratárias à proposta salvífica calcada no ciclo kármico de mortes e renascimentos, inerentes a um ritualismo védico de práxis mais coletiva [Idem, p. 234]. Ao contrário de um período histórico de restauração ou renascimento que muitos historiadores defenderam por muito tempo, a dinastia Gupta representou um momento de mudança marcante na sociedade indiana, determinante para os rumos históricos e culturais tomados pelas tradições hindus a partir de então. Como bem destaca Thapar [2003, pp. 318-319, itálicos da autora] sobre o período de 300 a 700 E.C., “Três importantes aspectos do vaishnavismo e do shaivismo, que tiveram suas raízes nas mudanças deste período, levaram a um ethos religioso diferente daquele dominado tanto pelo budismo quanto pelo brahmanismo védico. A imagem emergia como o foco do culto, e esta forma de culto, centrada na puja [adoração], substituía o sacrifício védico. [...] A redução da ênfase no sacerdote comparada ao seu papel no sacrifício ritual do brahmanismo védico gradualmente levou ao culto devocional – bhakti –, tornando-se a forma mais difundida da religião purânica. O culto à deidade tornou-se a principal preocupação do indivíduo, visto que através de bhakti o indivíduo poderia aspirar à libertação do renascimento. A religião védica tinha rituais bem definidos e era exclusiva das castas superiores. A religião purânica tinha um apelo bem mais amplo. Sua acessibilidade repousava na realização de atos que exigiam pouco investimento” Com efeito, é possível identificar nitidamente a presença de todos estes padrões de religiosidade hindu no Rāmāyaṇa de Vālmīki, de modo que sua redação se constitua num produto final que busca conjugar todas essas perspectivas confessionais. Para além disso, não apenas os contextos históricos e culturais, como também os temas e motivos que deram origem aos conteúdos dos Itihāsas, circunscrevem-se a narrativas relativas a heróis e divindades hindus recitadas em contextos rituais védicos – como o rājasūya e o aśvamedha – adquiriram mais proeminência através de bardos em cortes aristocráticas indianas, principalmente ao longo do primeiro milênio E.C. Uma testemunha textual deste fenômeno encontra-se num dos principais manuais de ritualística védica, o Śatapatha Brāhmaṇa, mais especificamente quando Novos Estudos em Extremo Oriente 116 versa sobre o aśvamedha, no quarto adhyāya [capítulo], 3:15, de seu décimo terceiro kāṇḍa [parte]: “Ao contar esta estória recorrente, ele conta a todas as realezas, todas as regiões, todos os Vedas, todos os devas, todos os seres; e, em verdade, para quem quer que o hotṛ, sabendo disso, conte essa estória recorrente, ou quem até mesmo saiba disso, alcance a companhia e a comunhão destas realezas, ganhe o domínio soberano e o domínio sobre todas as pessoas, assegure para si todos os Vedas e, satisfazendo os devas, finalmente se estabeleça em todos os seres. Essa mesma estória dá repetidas voltas em um ano; e, na medida em que revolve uma e outra vez, portanto, é chamada de estória recorrente.” [Eggeling, 1900, pp. 370-371] Na medida em que o registro textual adquiria proeminência na cultura hindu, os brāhmaṇas conferiam uma redação cada vez mais ornamentada às composições originais dos Itihāsas, no intuito de aumentar a plausibilidade de sua hegemonia cultural sobre a ordem social, de maneira que o dharma hindu fosse “explorado em uma ampla variedade de contextos situacionais. Os [Itihāsas] são úteis porque, ao contrário das obras filosóficas, dos textos rituais e dos hinos védicos que os precedem, eles descrevem a vida social e da corte em detalhes vívidos.” [Rodrigues, 2006, pp. 136-137] como, por exemplo, relações entre membros familiares, seus sentimentos e motivações, suas atividades diárias, etc. A importância da audiência neste contexto residia no objetivo de legitimação das casas reais, com base na sanção de sacralidade conferida por certos padrões de religiosidade popular indiana que ganhavam bastante vulto entre os súditos, principalmente a devoção mística [bhakti] e as tradições ascetas renunciantes dos śramaṇas: “A estória inevitavelmente assume certos aspectos arquetípicos à medida que é contada e recontada porque se torna propriedade da comunidade.” [Buck, 1980, p. 43]. Esta mesma comunidade participa, irrevogavelmente, de projetos políticos e valores culturais que deem sustentação e plausibilidade a determinada cultura. Neste intuito, os Itihāsas acabam servindo também a cálculos estéticos literários do sânscrito de legitimação no poder de dinastias inteiras na história do subcontinente indiano, apropriando-sede épicos como paradigmas vivenciais de um suposto passado que precisa ser construído e elaborado, em níveis superlativos de qualidade existencial, na própria textualidade da epopeia: “A epopeia como literatura de uma época olhando com nostalgia para outra pode se tornar uma literatura de legitimação. As interpolações são muitas vezes a legitimação do presente, mas são atribuídas aos heróis do passado. Os bardos talvez estivessem fornecendo os modelos de como os patronos deveriam ser. Porém, mais importante, são os reinos olhando para trás em uma era de comando.” [Thapar, 2000, p. 132] Novos Estudos em Extremo Oriente 117 Duas formas de consciência histórica advogadas por Romila Thapar são úteis para a compreensão de toda esta dinâmica histórico-cultural circunscrita aos Itihāsas, a saber, a “história incrustada” [embedded history], na qual a consciência histórica de determinada cultura encontra-se em mitos (seu modo mais profundo), genealogias, panegíricos e épicos, incrustada como os veios numa rocha, com informações relativas ao passado da respectiva cultura e aos comentários de cada momento presente, subsequente no tempo, que lhe aborda e dele se apropria; e a “história externalizada” [externalized history], que tende a revelar a história incrustada e ser mais consciente de seu uso calculado do passado por lideranças políticas e elites sociais, tal como em crônicas familiares, regionais ou institucionais, assim como de biografias de autoridades. Para Thapar, “Na articulação da consciência histórica no início da sociedade no norte da Índia, as formas verdadeiramente incrustadas são evidentes na literatura da sociedade baseada na linhagem, caracterizada pela ausência de formação do Estado, e as formas mais livres ou externalizadas emergem com a transição para os sistemas de estado.” [Idem, p. 125]. O pertencimento de Rāma à linhagem régia solar [Sūryavaṃśa] dos Ikṣvākus é um indício literário significativo disto. A historiadora indiana afirma que a consciência histórica desenvolveu-se na Índia antiga a partir de determinada história incrustada muito em função dos Itihāsas refletirem os germes de uma tradição histórica mais consciente e menos incrustada, tendo em vista o fato de serem a expressão de um momento posterior se apropriando de um momento anterior, tomando a forma de interpolações intercaladas entre os fragmentos da tradição oral dos poetas [Ibidem, p. 131]: “A sociedade agro-pastoril do mundo dos heróis estruturada em torno das linhagens dá lugar a sociedades mais claramente agrárias e ao surgimento de centros urbanos controlados pelo que visivelmente emerge como um sistema estatal – que no vale do Gaṅgā, neste período, era principalmente monárquico.” [Idem]. Referências biográficas Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História e Pesquisa das Religiões]. Referências bibliográficas APTE, Vaman Shrivam. The Student’s Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Delhi: Motilal Barnasidass Publishers, 1970. Novos Estudos em Extremo Oriente 118 BROCKINGTON, John. The Concept of Dharma in the Rāmāyaṇa. In: OLIVELLE, Patrick [ed.]. Dharma. Motilal Barnarsidass Publishers, 2010, pp. 233-248. ______. The Sanskrit Epics. In: FLOOD, Gavin [ed.]. The Blackwell Companion to Hinduism. Oxford: Blackwell Publishing, 2003, pp. 116-128. BUCK, Harry H. The role of the sacred book in religion - The Ramayana. In: RAGHAVAN, V. [ed.]. The Ramayana Tradition in Asia. New Delhi: Sahitya Academi, 1980, pp. 40-57. CARVALHO, M. L. Dimensões religiosas e seculares do ascetismo renunciante hindu (parivrajyā) nas Leis de Manu (Mānava-Dharmaśāstra). Revista Plura, vol. 8, n. 1, jan-jun 2017, pp. 212-239. EGGELING, Julius [trad.]. The Śatapatha Brāhmaṇa. Oxford: The Clarendon Press, 1900, Part V. [Sacred Books of the East vol. 44] FLOOD, Gavin. An introduction to Hinduism. Cambridge, Cambridge University Press, 1996. HALBFASS, Wilhelm. Tradition and Reflection: explorations in Indian thought. New York: State University of New York Press, 1991. MONIER-WILLIAMS, Monier. A Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1899. ROCHER, Ludo. The Dharmaśāstras. In: FLOOD, Gavin (ed.). The Blackwell Companion to Hinduism. Oxford: Blackwell Publishing, 2003, cap. 4, pp. 102-115. RODRIGUES, Hillary. Introducing Hinduism. New York: Routledge, 2006. THAPAR, Romila. Society and Historical Consciousness: The Itihāsa-Purāṇa Tradition. In: Cultural Pasts. 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Ele se coloca como defensor da Escola dos Eruditos (“confucionismo”), mas teve inspirações e ensinou a membros da Escola das Leis, usava selecionadamente termos dos daoístas Laozi e Zhuangzi, utilizava algumas estruturas teóricas dos moístas enquanto criticava veementemente o filósofo Mo (Mozi), entre muitas outras interações com textos e ideias das “cem escolas” de pensamento. Por isso mesmo, nesse breve texto defendo que o Xunzi é uma relevante fonte de registro dos autores, ideias e debates da filosofia antiga chinesa. Se o que eu defendo fizer sentido, a leitura do Xunzi constitui por si só uma fonte de informações sobre o campo filosófico, especificamente, e da história das ideias da China antiga, em geral. De forma complementar, o estudo do Xunzi nos convida a conhecer novos autores, ler outras obras e entender como o que ele diz se relaciona com o seu tempo histórico. Mais do que isso, entender os pontos defendidos por Xun implica conhecer quem, o que e como ele está criticando, para depois ter maior clareza sobre suas posições e argumentos. Já foi publicado recentemente um texto sobre as críticas do filósofo Xun no seu capítulo 22 (Zheng Ming, Nomeação Correta) contra o que ele atacou como sendo falácias de outros filósofos do seu tempo (Costa, 2021b). Este é um exemplo entre muitos de críticas a teses de outros pensadores, contudo, esse capítulo 22 é um exemplo de críticas indiretas, sem citar nomes, que Xun fez aos seus oponentes intelectuais. Ele também elaborou julgamentos específicos contra algum filósofo: os capítulos 18 e 20 são exemplos desse último caso, em que ele critica ideias do Mozi e do Songzi, respectivamente. Dessa vez busco mostrar alguns trechos do Xunzi em que ele faz críticas explícitas a vários outros filósofos – trechos de tradução que serão mostrados abaixo, de forma direta ou sintetizada. A seguir, analisarei esses trechos do Xunzi buscando responder à pergunta: de que forma a sua obra nos possibilita a conhecer mais as ideias da antiguidade chinesa? Novos Estudos em Extremo Oriente 120 Capítulo Livrar-se das obsessões, trecho 5 O capítulo 21 do Xunzi, Livrar-se das obsessões (Jie Bi), provavelmente foi escrito no início da carreira do filósofo Xun, quando ele foi estudante na Academia Jixia (Knoblock, 1982-1983, p. 35). Esse foi um espaço de trocas e disputasintelectuais na China Antiga durante o período dos Estados Combatentes (aproximadamente 403-221 AEC), tempos de intensa instabilidade política e bélica. Dentre as estratégias que Xun usou para explicar o que ele entendia ser um grande problema epistêmico para o estabelecimento da ordem no seu tempo, as obsessões, ele articula o seguinte trecho que traduzi para atacar quem eram os filósofos (zi) obsessivos (bi) e defender quem era o modelo de filósofo livre de obsessões, Confúcio: “No passado, os peregrinos renomados eram pessoas obcecadas e eram das várias escolas [de pensamento] desordenadas. Mozi [Mo Di] obcecava-se pela utilidade e não reconhecia [os refinamentos da] cultura. Songzi [Song Xing] obcecava-se pelo desejo e não reconhecia a realização [pessoal para além dos desejos naturais]. Shenzi [Shen Dao] obcecava-se pelas leis e não reconhecia as virtudes [como valor de uso político]. O Shenzi [Shen Buhai] obcecava-se pelas táticas pelo poder e não reconhecia o conhecimento [seguro e constante]. Huizi [Hui Shi] obcecava-se pelas proposições e não reconhecia a realidade [concreta para além da linguagem]. Zhuangzi [Zhuang Zhou] obcecava-se pela natureza e não reconhecia os humanos [em sua singularidade]. Então, referir-se ao Caminho por meio da utilidade é limitá-lo ao ‘benefício’. Referir-se ao Caminho por meio do desejo é limitá-lo a ‘satisfação’. Referir-se ao Caminho por meio das leis é limitá-lo ao ‘controle’. Referir-se ao Caminho por meio das táticas pelo poder é limitá-lo a ‘conveniência’. Referir-se ao Caminho por meio das proposições é limitá-lo a ‘discussão’. Referir-se ao Caminho por meio da natureza é limitá-lo a ‘conformidade’. Estas [posições] contam como ferramentas [úteis], mas todas são apenas um aspecto do Caminho. Contudo, o Caminho tem forma constante e abarca [todas] as transformações, um aspecto é insuficiente para expressá-lo. O conhecimento distorcido das pessoas vê apenas um aspecto do Caminho e não é capaz de conhecê-lo. Então, ao pensar que isso é suficiente e elogiável, internamente desordenam-se a si mesmos, externamente confundem as pessoas; [estando] por cima, obcecam-se por baixo, [estando] por baixo, obcecam-se por cima: essas são as desgraças de estar na condição de ser obcecado. Confúcio [tinha as virtudes da] humanidade e da sabedoria e também não era obcecado, então estudava os diversos métodos suficientemente: considero [suas virtudes] tal como as dos Reis Antigos. O princípio da sua Escola realizou o Caminho Amplo e escolheu empregá-lo, não foi obcecada a ponto de fixar-se e estagnar-se. Assim, sua virtude está no nível do duque de Zhou, seu renome está à altura dos três Novos Estudos em Extremo Oriente 121 Reis [Sábios da Antiguidade]. Essas são as felicidades de não ser obcecado” (Xunzi, cap. 21.5, 2006, tradução nossa). Capítulo Discurso sobre o Céu, trecho 17 Escrito mais tardiamente, o capítulo 17, Discurso sobre o Céu (Tian Lun) é um escrito mais maduro e sistemático. Quando o redigiu, Xun já havia estudado, trabalhado como ministro, e provavelmente era professor-chefe da Academia Jixia (Knoblock, 1982-1983, p. 38 e 46). Ao final do capítulo, ele elabora uma crítica mais sintética e parecida com a que foi lida anteriormente, mas apresentou uma lista um pouco diferente de autores. Seu ponto principal, como no capítulo 21 mostrado acima, é a defesa de ser completo e não parcial, entendendo que somente o Caminho dos Reis Sábios proporcionaria essa amplitude de visão e de postura ética, ou seja, a percepção correta da ordem natural e da ordem social, somada à postura político ética confuciana. “As dez mil coisas representam [apenas] uma parte do Caminho (Dao), uma coisa representa apenas uma parte das dez mil coisas. As pessoas tolas agem [baseadas apenas em] uma parte de uma coisa, mas elas próprias consideram conhecer [todo] o Caminho, [mas] não o conhecem. Shenzi [Shen Dao] expressava a perspectiva de manter [um governo], não a perspectiva de liderar; Laozi expressava a perspectiva do ceder, mas não da confiabilidade; Mozi expressava a perspectiva da uniformidade, mas não da diferenciação [social]; Songzi [Song Xing] expressava a perspectiva do ter pouco [desejo], mas não do ter muito [desejo]. Tendo a manutenção, mas sem a liderança, segue-se que as massas não terão saídas [para seus problemas]. Tendo o ceder, mas sem a confiabilidade, segue-se que o valoroso e o sem valor não são diferenciados. Tendo a uniformidade, mas sem a diferenciação, segue-se que as ordens do governo não serão aplicadas. Tendo poucos [desejos], mas sem aumentá-los, segue-se que as massas não se transformam” (Xunzi, cap. 17.17, 2006, tradução nossa). Capítulo Contra os 12 filósofos, trechos 1 ao 9 Após ter estudado e ter sido professor-chefe na Academia Jixia, e já com vasta experiência como ministro em vários Estados, de volta a Zhao, sua terra natal, ele escreveu o capítulo que foi editado como o 6º do livro Xunzi, Contra os 12 filósofos (Fei Shier Zi), conforme Knoblock (1982-1983, p. 46). Mais agressivo, por um lado, mas também mais justo, por outro lado, nesse capítulo ele tece críticas e elogios aos seus oponentes. E, mais uma vez, defendeu o seu mestre, Confúcio, porém acrescentando o discípulo Zi Gong do mestre, já que o próprio Xun se colocava dentro da linhagem de interpretação de Zi Gong. Dado que os comentários aos doze filósofos (zi) constituem quase todo o capítulo, nesse caso, foi necessário mostrar uma síntese do capítulo, que apresento a seguir. Novos Estudos em Extremo Oriente 122 Conforme os trechos 1 ao 9 do capítulo Contra os 12 filósofos, Xun (2006) defende que as doutrinas traiçoeiras enganam o povo e os governantes. Em especial, ele crítica (e elogia) 12 filósofos em pares, formando 6 doutrinas criticadas: (1) Tuo Xiao e Wei Mou agem equivocadamente conforme suas tendências e emoções (que Xun entende serem naturalmente egoístas), mas explicam bem; (2) Chen Zhong [Tian Zhong] e Shi Qiu veem o desviante como o benéfico, explicam mal, mas exaltam a distinção entre pessoas (visto como positivo para Xun); (3) Mo Di (Mozi) e Song Xing desprezam a unificação do país e as distinções sociais e políticas, mas explicam de forma bem fundamentada; (4) Shen Dao e Tian Pian exaltam as leis, conhecem bons modelos de conduta, e explicam bem fundamentados, mas não se autocultivam moralmente; (5) Hui Shi e Deng Xi desconsideram os Reis Antigos e os Ritos, gostam de argumentações estranhas e precisas que não tem serventias práticas, mas explicam bem fundamentados; e, por fim, de modo raro na China antiga, Xun critica até mesmo membros da sua própria escola filosófica, a Escola dos Eruditos (“confucionismo”), da seguinte forma: (6) Zisi e Mêncio respeitam o sistema dos Reis Antigos, mas não os entendem, eles tem boas intenções, mas seguem a doutrina das cinco condutas adequadas, que, na verdade, não está de acordo com Confúcio e Zi Gong (não é explicado por qual motivo ele pensa que é uma doutrina em desacordo com o mestre); Por fim, ele tece os elogios finais a quem ele entende que são bons modelos de filósofos: Confúcio e Zi Gong, souberam sintetizar as melhores técnicas e estratégias através de princípios adequados, que seria confiar no confiável e duvidar do duvidoso, mas respeitar à todos (Knoblock, 1988). Breve análise Observamos nos três capítulos selecionados que o filósofo Xun crítica (e eventualmente elogia) de modo explícito outros filósofos do seu tempo – a antiguidade chinesa. Como pode ser notado no quadro abaixo, os filósofos mais citados e presentes nos três textos, foram: Mozi (Mo Di), Songzi (Song Xing), Shenzi (Shen Dao). Em seguida filósofos citados em pelo menos dois capítulos foram somente Confúcio e Huizi (Hui Shi). Os demais 17 nomes aparecem somente um dos textos analisados: Chen Zhong (Tian Zhong), Deng Xi, Laozi (Lao Tan), Mêncio, Shenzi [Shen Buhai], Shi Qiu, Tian Pian, Tuo Xiao, Zhuangziessencial para o rápido crescimento econômico, não apenas do extremo Oriente, mas também em outros países em desenvolvimento” (EVANS, p. 10, 2004) Desta forma, a Coreia do Sul, sobretudo sob o governo do general Park, desenvolveu um Estado relativamente tecnocrático, com objetivos claros em relação ao desenvolvimento, que implementou políticas industriais realistas, estabelecendo um arcabouço institucional capaz de dar suporte ao crescimento econômico. Fundamentalmente a Coreia estabeleceu uma trajetória que tinha como objetivo o desenvolvimento através de uma mudança qualitativa de sua participação na divisão internacional do trabalho. A meta era se tornar exportadora, no longo prazo, de bens de alto valor agregado que possibilitassem a criação de empregos qualificados, capazes de garantir um continuado aumento da renda do salário e, também, aumento dos lucros, possibilitando uma contínua melhora do nível de vida da maior parte da população. Como os países desenvolvidos detém o quase monopólio da produção dos bens de alto valor agregado e alto conteúdo tecnológico, vê-se logo que não é tarefa trivial modificar de forma significativa as relações da divisão internacional do trabalho e suas grandes assimetrias, sobretudo para um país pequeno territorialmente e com uma população não muito grande como a Coreia do Sul. A transformação produtiva de país foi possível por uma série de fatores, o que inclui a ajuda dos EUA no contexto da Guerra Fria, mas também porque o processo político interno possibilitou a criação de políticas de desenvolvimento relativamente coerentes com o estágio econômico em que se encontrava a Coreia no momento da implantação dessas políticas. A partir da década de 1970, o Estado, e muitas empresas privadas, se voltaram para a Microeletrônica, ramo de alto conteúdo tecnológico e onde, atualmente, a Coreia do Sul é um dos expoentes mundiais. Novos Estudos em Extremo Oriente 14 A Indústria de Microeletrônica na Coreia do Sul A indústria da microeletrônica começa a se consolidar em âmbito mundial na década de 1960, é neste momento que Governo e empresas coreanas e multinacionais começam a articular a instalação e desenvolvimento deste setor no país asiático. Inicialmente as expectativas eram relativamente baixas, dado o então atraso tecnológico coreano. Segundo Ibrahim (2019, p.87): “O arranjo produtivo da indústria de microeletrônica pode ser dividido em cinco etapas da cadeia produtiva: concepção do produto, projeto, fabricação, encapsulamento e teste, e serviço ao cliente. De forma prática, a primeira etapa vem realizar a concepção de requisitos e desempenho do dispositivo determinando às funções em hardware e software, verificando as necessidades e funções do dispositivo. No segundo estágio, as Design Houses realizam o projeto e arquitetura em diálogo com a fase seguinte da fabricação, testes e validações. O processo de fabricação materializa o projeto desenvolvido anteriormente e repassa à fase de encapsulamento que monta os dispositivos de acordo com o projeto realizado. Por fim a etapa de serviços ao cliente presta assessoria técnica e acompanhamento do funcionamento dos dispositivos”. De fato, o “arranjo produtivo” sul coreano era incapaz de reproduzir todas essas etapas, inicialmente apenas o encapsulamento era realizado no país, e era dominado por multinacionais dos países centrais, sem repasse da tecnologia e com pouca formação de mão de obra qualificada, sobretudo na área de concepção do produto, limitando o desenvolvimento dessa indústria em território coreano, o que levou o governo a estabelecer a Lei de Promoção de Eletrônicos em 1969 (idem, p. 91). Centrado nos Chaebols (conglomerados) e com largo apoio estatal, o país começou a conduzir uma política industrial para o setor de microeletrônica visando internalizar a produção e tornar-se exportador de componentes e produtos completos, mesmo que no longo prazo, dada as barreiras de entrada nessa indústria de alta capacitação tecnológicas. A criação de vários institutos voltados ao desenvolvimento dessa indústria como o Korean Institute of Electronics and Technology – KIET, o Korean Electronics and Telecommunications Research Institute – KETRI e o Korean Advanced Institute of Science and Technology – KAIST, foram de grande relevância para formar mão de obra qualificada. Vale salientar que alguns empreendimentos voltados a microeletrônica não foram bem-sucedidos, sofrendo de falta de capacidade tecnológica e tendo que sobreviver no mercado interno coreano que, até o final da década de 1970, era bastante limitado, o que comprimia os lucros, dificultava os ganhos de economia de escala e, portanto, criava um certo desinteresse por parte da indústria local. Desta forma, o Estado fornecer diversos tipos de subsídios foi de grande importância para a primeira fase de desenvolvimento desse setor. O sistema financeiro dominado pelo Estado havia colocado o principal Chaebols em uma “dieta de esteroide” desde meados da década de 1960, mas, em troca de seu apoio, exigiu da empresa um desempenho competitivo Novos Estudos em Extremo Oriente 15 crescente. No decorrer da década de 1970, o estímulo do “fisiculturismo empresarial” do Estado criou um caminho natural na direção das tecnologias da informação por meio do condicionamento do apoio a disposição das empresas em explorar novos setores, sendo o da eletrônica um dos mais recomendados. (EVANS, 2004, p. 209). Mesmo que o caminho rumo à microeletrônica não tenha sido tão natural, como supõe Evans, é evidente que a atuação do Estado foi decisiva para alavancar a indústria local, e não apenas no ramo aqui analisado. Evans (idem) ainda destaca o fato de que o mercado interno coreano ficou praticamente restrito as empresas do país, principalmente os Chaebols, enquanto as empresas estrangeiras se concentravam nas exportações. Quanto maior era o grau de desenvolvimento da indústria coreana mais as multinacionais compravam componentes de empresas locais, o que, além de aumentar a agregação de valor no país, também contribuía para impor a essas empresas padrões de qualidade e eficiência internacionais, favorecendo a curva de aprendizagem e as tornando mais capacitadas a concorrerem no mercado externo, não apenas como produtoras de componentes, mas também como produtoras de bens finais, o que aconteceria sobretudo na década de 1980. De fato, a penúltima década do século passado observou “O crescimento vertiginoso da produção de computadores e semicondutores na Coreia” (EVANS, 2004, p. 228), e se torna o principal setor exportador. Evans (idem) também atenta para as inúmeras alianças internacionais que as empresas coreanas fizeram, sobretudo a partir de 1980, como acordos tecnológicos e joint ventures, além de começarem a abrir subsidiárias em outros países, amplificando o processo de internacionalização da indústria de microeletrônica em particular e da própria economia coreana em geral. Analisando as estratégias de alguns dos principais cheabols ao longo da década de 1980 Ibrahim (2019) observa uma maior interação entre eles e institutos governamentais de tecnologia, amplificando os investimentos em microeletrônica. A Samsung montou uma força tarefa em 1982 tento em vista desenvolver e produzir memória 64k DRAM, no ano seguinte abriu uma planta de P&D na Califórnia, contratando engenheiros com experiência em empresas norte americanas, tanto para trabalhar na nova planta nos EUA como para trabalhar na Coreia (Idem). A meta era não apenas desenvolver semicondutores, mas também capacitar coreanos, de forma a atingir independência tecnológica. Mas não era apenas a Samsung que estava desenvolvendo produtos no setor de microeletrônica, a Hyundai também se tornou produtora de memória 64 DRAM, enquanto a Daewoo e LG focaram em outros nichos de mercado para memórias; “Os chaebols foram capazes de entrar na produção de microeletrônica de memória[Zhuang Zhou], Zi Gong, Zisi e Wei Mou. Novos Estudos em Extremo Oriente 123 Quadro 1: Ocorrência de nomes de filósofos nos capítulos 6, 17 e 21 do Xunzi. Fonte: elaborado pelo autor (2022). Desses 22 nomes encontrados nesses três capítulos, vamos tecer somente algumas breves análises e comentários. Primeiro, é notável que somente alguns poucos nomes foram estudados e citados em pesquisas sobre filosofia chinesa em língua portuguesa, mesmo quando em traduções, como Confúcio, Zi Gong, Zisi, Mêncio (todos confucianos, até agora), Laozi, Zhuangzi, e, em menor alcance, Mozi, Huizi, Shen Dao e Shen Buhai – ver os vários manuais de “introdução” à filosofia chinesa em português (Kaltenmark, 1981; Granet, 1997; Cheng, 2008; Lay, 2009; Van Norden, 2018, Wu, 2018). Os demais filósofos são praticamente desconhecidos, no máximo mencionados, como aliás, por falta de espaço, faremos o mesmo por enquanto, deixando eles para um próximo texto. Segundo, sobre a recorrência de autores. É uma surpresa que, mesmo havendo um capítulo específico somente em elogio a Confúcio na obra Xunzi (2006), ainda assim, nos capítulos analisados, seu grande inimigo intelectual o Mozi, aparece mais do que o próprio Confúcio. Songzi, alvo de críticas em capítulos inteiros, como o já citado capítulo 18, é mais citado do que Zi Gong, que é o segundo Erudito (Ru) mais respeitado por Xun, depois de Confúcio, claro. Shen Dao é citado nos três capítulos, mesmo em forma de crítica, o que de alguma forma evidência a já conhecida relação intensa de confronto e de empréstimo que Xun tem com a Escola das Leis (Legalismo). Terceiro: Quem eram esses vários autores mencionados no Xunzi? Vamos nos concentrar nos mais mencionados nos capítulos investigados. O filósofo Mo Di (Mozi) viveu aproximadamente entre 479-372 AEC (Cheng, 2008, p. 101). Trata-se do primeiro forte opositor das ideias de Confúcio, o que faz Xun o ver Novos Estudos em Extremo Oriente 124 como um adversário político e intelectual. Por outro lado, Xun usou de métodos e terminologias moístas, como a noção de distinção argumentativa (bian), e a técnica de discursos escritos mais lineares e explicativos (shuo). O filósofo Song (Songzi) é na verdade um compilado de escritos redigidos entre os séculos V e III AEC, que, em síntese, defendia que os humanos devem diminuir desejos para ter uma vida melhor e a ordem social almejada. Ele já foi aproximado tanto dos moístas (como Xun fez no capítulo Contra os doze filósofos) como dos daoístas, porém, na antiguidade entendiam que ele tinha uma escola própria (Theobald, 2011). Por sua vez, Shen Dao (350-275 AEC) foi um filósofo legalista que defendia a necessidade da existência das leis e a nossa obediência à elas como o melhor caminho político para a manutenção da sociedade e como melhor critério objetivo em medidas políticas, morais ou físicas (Emerson, 2013). Os dois filósofos mencionados em dois dos três capítulos foram Confúcio e Huizi. Confúcio (551-479 AEC) é um dos autores mais estudados no Brasil dentre os filósofos chineses, junto com Laozi e Sunzi (Sousa, 2020), e talvez um dos mais conhecidos filósofos chineses em todo o mundo. Mesmo que ele apareça nos três capítulos menos do que em outros nomes, como já dito, Confúcio recebe um capítulo inteiro no livro Xunzi, e é um autor referencial em toda a obra do filósofo Xun. Confúcio é o principal agente da Escola dos Eruditos, uma tradição anterior a ele e que remete aos reis da antiguidade e aos seus servidores, sendo o sistematizador dessa tradição antiga que criou uma nova forma de ver e praticar essa mesma tradição para as gerações posteriores (Confúcio, 2012; Costa, 2021a). Huizi (Hui Shi, 380-305 AEC) teve um papel muito relevante na elaboração das primeiras filosofias da linguagem, com fins tanto teóricos, como éticos e até profissionais (Van Norden, 2018). Na dinastia Han (206 AEC-220EC), foi classificado dentro da “Escola dos Nomes”, um grupo heterogêneo de autores que se focavam em debates e paradoxos linguísticos na China antiga. Somente dez proposições dele sobreviveram, e estão presentes no capítulo 33 do Zhuangzi, traduzidas diretamente do chinês para o português por Souza (2016, p. 70-71) e por Tsai (2017, p. 132-133). Sobre os demais filósofos, caberia uma análise mais aprofundada em outro momento, mas que já conta com algumas informações em Knoblock (1988). Por ora, basta apontar duas coisas: (1) a leitura do Xunzi confirma que os antigos filósofos chineses se liam e tinham discordâncias e concordâncias mútuas, como é o caso da postura que Xun tem em relação aos daoístas Laozi e Zhuangzi, ou mesmo com os legalistas como o Shen Buhai; (2) há alguns filósofos por ele mencionados em que são desconhecidos até mesmo o nome por boa parte de quem pesquisa filosofia chinesa em língua portuguesa, como o Chen Zhong, Deng Xi, Shi Qiu, Tian Pian, Tuo Xiao, Wei Mou, e isso evidência que muito ainda precisa ser investigado da história intelectual chinesa. Em quarto lugar, em relação aos argumentos do próprio Xun, nos capítulos 17 e 21 ele escreveu dois parágrafos muito parecidos em termos de argumentação. Trata-se do seguinte: suas críticas são contra o viés parcial, até Novos Estudos em Extremo Oriente 125 mesmo obsessivo e vicioso, que muitos filósofos têm com apenas um aspecto da realidade, enquanto, por outro lado, defende uma visão ampla que é capaz de observar os “grandes padrões” próprios de cada coisa existente. Isso seria possível justamente por saber que cada coisa tem seu próprio padrão, sua regularidade e estrutura, e, ao mesmo tempo, por seguir a postura ética dos Eruditos (“confucianos”) virtuosamente trabalhada de forma ritual e pelo modelo virtuoso dos Reis Sábios da antiguidade. Já o capítulo 6 se difere em dois sentidos: (1) devido a ele citar vários filósofos, muitos até hoje pouco estudados, mostra-se uma fonte histórica única, como um indexador de filósofos da sua época; (2) além de apontar críticas, como fez antes, seu argumento é mais justo nesse capítulo, já que reconhece várias qualidades dos seus oponentes, ao passo que aponta que somente Confúcio e Zi Gong de fato são completos. Estruturalmente, sua premissa de que é necessário ser amplo e completo, e não parcial, continua. Mas foi adicionada a premissa de que é possível, sim, aprender com os filósofos incompletos e parciais, em alguma medida e em algum sentido. Mais exatamente, Xun nos sugere confiar no que é confiável e duvidar do que é duvidoso, numa postura de constante investigação. Ao contrário do que possa ser esperado, ele não propõe que não levemos em conta outros pensamentos, mas sim que os respeitemos. Como ele disse em seu capítulo 22: “É brilhante quem consegue ouvir a todas [elas], sem que seu semblante seja orgulhoso ou combativo. É generoso quem consegue abranger todas [elas], sem que sua aparência [demonstre] ataque às suas virtudes” (Xunzi, cap. 22, In: Costa e Li, 2021, p. 126). Apesar de escolher um projeto político-filosófico específico, o confucionismo, ele não é dogmático, mas escolhe o que é “confiável”, mesmo dentro da sua tradição. Isso é confirmado pela sua crítica a Mêncio, tanto nesse capítulo 6 como no seu capítulo 23. Conclusão Inicialmente, perguntei: de que forma a obra Xunzi nos possibilita a conhecer mais as ideias da antiguidade chinesa? Conclusivamente, a partir dessa breve análise dos três capítulos (6, 17 e 21), digo que o livro do filósofo Xun exige do leitor ou da leitora uma perspectiva abrangente da história da filosofia chinesa antiga, já que torna necessário conhecer melhor os outros autores citados. Até mesmo possíveis erros ou frases incompletas registradas por ele forçam com que leitores e leitoras busquem por entender o que está sendo criticado e por qual motivo – por exemplo, sua crítica ao Mêncio no capítulo 6 exige a leitura do seu capítulo 23 e até da própria obra Mêncio (ver Ho, 2006). Uma leituraatenta do Xunzi mostrará também toda uma rede das “cem escolas” de pensamento e dos vários filósofos que se articulam em alguns pontos e disputam ideias em outros aspectos. Dessa forma, a obra Xunzi nos convida e nos desafia a conhecer mais sobre a diversidade filosófica na China antiga, de forma que o próprio projeto xunziano seja melhor compreendido junto com seu contexto intelectual. Novos Estudos em Extremo Oriente 126 Referências biográficas Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando pelo Departamento de Filosofia da USP, é doutor e mestre em Ciência das religiões pela PUC-SP, é graduado em Filosofia pela UNINTER-PR e em Ciência das religiões pela UNIMONTES-MG. 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Novos Estudos em Extremo Oriente 128 HANGUL (한글): BREVE ANÁLISE SOBRE A COMPOSIÇÃO DO ALFABETO COREANO por Mayara Bassanelli e Felipe Ruzene Considerações iniciais Nem sempre nos atentamos à relevância ímpar do alfabeto para as sociedades. Todavia a escrita foi tão imprescindível à humanidade que só passamos a falar em História (e não mais Pré-História ou Proto-História) a partir de sua invenção e uso. A Coreia medieval parece ter sido obrigada a pensar a pertinência da escrita, uma vez que, por não deter um alfabeto próprio ao seu idioma, utilizava um sistema de escrita estrangeiro [NATIONAL INSTITUTE OF KOREAN LANGUAGE, 2008]. Dessa necessidade nasceu o Hangul (한글), o alfabeto da língua coreana, que foi deliberadamente pensado e projetado para que suas características atendessem às exigências do idioma e povo coreanos [PAE, 2018, p. 335-336]. Tal alfabeto, por sua história e formação linguística bastante singulares, tornou-se abundante temática nas mais diversas áreas do conhecimento. Entendendo a origem do Hangul, este texto visa apresentar o processo de permutação da escrita chinesa à coreana, bem como fazer uma introdução às estruturas linguísticas do alfabeto supostamente desenvolvido pelo Rei Sejong no século XV. Formação histórica: do chinês ao coreano Os caracteres chineses, Hànzì (漢字), já eram conhecidos na Coreia desde antes da Dinastia Han (206 AEC a 220 EC) e foram amplamente utilizados pela administração local durante esse período. A primeira evidência do uso da escrita chinesa na Coreia provém de uma inscrição em pedra datada de 414 EC [KING, 1996, p. 218]. Durante um longo período o idioma e os caracteres chineses foram utilizados como língua franca em todo o Leste da Ásia (assim como foi com o latim para a Europa medieval), inclusive no Japão, Coreia e Vietnã [MARINO, 2020, p. 11]. O alfabeto chinês permaneceu, embora com notáveis dificuldades, arraigado na vida literária coreana [NATIONAL INSTITUTE OF KOREAN LANGUAGE, 2008]. Dois dos principais problemas verificados foram: a lacuna entre a língua coreana e os caracteres da escrita chinesa e a dificuldade na alfabetização em chinês que, por sua complexidade e diversidade, gerava uma crescente restrição ao acesso à escrita e leitura. Evidentemente, não devemos desconsiderar as relevâncias sociopolíticas do desenvolvimento de um alfabeto coreano próprio. Como bem definiu Marcos Bagno [2015], a linguagem (escrita ou falada) é uma entidade social que atua enquanto instrumento de poder. O idioma é, certamente, um importante Novos Estudos em Extremo Oriente 129 patrimônio cultural que carrega a história e o espírito de um povo [NATIONAL INSTITUTE OF KOREAN LANGUAGE, 2008]. Portanto, a dependência coreana do alfabeto chinês gerava complicações políticas internas (a restrição da escrita às elites) e externas (a resignação ao poder político-cultural da China). O primeiro sinal de ruptura entre as escritas chinesa e coreana se deu pela tentativa de escrever com caracteres emprestados do alfabeto chinês – ou seja, escrever nomes coreanos transliterados no chinês encontrado na literatura e nos textos budistas. Chamou-se tal sistema de Hanja (漢字) [MARQUES, 2021]. Esse alfabeto de caracteres sino-coreanos era proveniente da adição de leituras e significados coreanos a certos ideogramas genuinamente chineses. O que não era de se espantar, afinal a Coreia possuía vasta experiência no uso da escrita proveniente da China [KING, 1996, p. 218]. Todavia, tal sistema ainda era ineficiente, pois expressava imperfeitamente a língua coreana, de modo que idioma e escrita estavam desempenhando funções desassociadas e imprecisas [PAE, 2018, p. 336]. Em vista disso, Rei Sejong (r. 1418-1450), o Grande (朝鮮世宗 세종대왕), quarto monarca da dinastia Joseon (1392-1897), teria desenvolvido o Hunminjeongeum (훈민정음) – nome inicial do alfabeto coreano. Os autores ainda discordam quanto à criação dessa escrita. Alguns afirmam que o próprio Sejong foi o único responsável por sua composição, algo que teria feito secretamente para não encontrar oposição das elites e dos intelectuais, como exposto pelo National Institute of Korean Language[2008]; outros atribuem a formação do alfabeto ao Instituto Real, Jiphyeonjeon (집현전), sendo o rei apenas um intermediário político para aprovação e cumprimento do novo sistema [MARQUES, 2021]. A criação do Hangul, segundo o Rei Sejong, deu-se para que a leitura e a escrita fossem aprendidas e ensinadas com clareza e agilidade [BINDI, 2015]. Os caracteres deveriam ser suficientemente fáceis para que fossem assimilados por todos com semelhante simplicidade, para o monarca o alfabeto deveria ser aprendido em menos de uma semana. Pode parecer estranho àqueles que não possuem familiaridade com o idioma [FRANCISCO, 2018, p. 137], entretanto, para os nativos em língua coreana, isso se mostrou verídico, visto que: “as letras do alfabeto formam o desenho da letra ao serem pronunciadas” [MARQUES, 2021]. Salienta-se que, mesmo após a propagação do Hangul, no século XV, a escrita chinesa permaneceu dominante na cultura coreana até a segunda década do século XX [KING, 1996, p. 218]. Isso ocorreu, pois a utilização do Hangul era associada aos ignorantes (mulheres, crianças e classes inferiores) e por isso foi rejeitado pelas elites locais, yangban (양반), e pelos intelectuais coreanos que permaneceram utilizando o Hanja. Por outro lado, o alfabeto coreano encontrou uma fértil aceitação nas camadas populares da época, pois era muito mais simples e poderia ser aprendido de maneira independente, sem educação proveniente da escolaridade formal [MARQUES, 2021]. Novos Estudos em Extremo Oriente 130 Cabe ressaltar a proibição ao Hangul durante o período de política de assimilação imposta pelo governo do Império do Japão (1868-1947), que invadiu a Coreia em 1910 [Cf. MACEDO, 2017]. Nesta época o uso do Hangul passou a ser um símbolo da resistência coreana ante ao invasor [MARINO, 2020, p. 12]. Ross King [1996, p. 219, tradução nossa] comenta que: “Desde a libertação do Japão em 1945, a Coreia concedeu um papel muito menos importante aos caracteres chineses do que nos tempos tradicionais, ou mesmo pré-libertação. A Coreia do Norte aboliu o uso de caracteres chineses na escrita pública em 1949, mas continua a ensinar um número limitado nas escolas. A política sul-coreana tem sido menos consistente; certos ministérios do governo usam mais caracteres chineses do que outros, mas a maioria dos principais jornais diários ainda os usa, e os alunos aprendem aproximadamente um mil e oitocentos caracteres [chineses] antes de terminar o ensino médio. O papel dos caracteres chineses na escrita coreana foi um assunto de acalorado debate público na República da Coréia na década de 1990”. O nome Hangul surgiu de um neologismo criado pelo linguista Cwu Si-Kyens (1876-1914), membro do movimento de reforma e promoção da língua e escrita coreanas. Até a década de 1910, o alfabeto também era conhecido como cengum (sons corretos), enmun (escrita vulgar) ou kwukmun (escrita nacional), sendo o nome original do coreano Hwunmin Cengum (訓民正音) [KING, 1996, p. 219]. Atualmente é considerado por vários linguistas como o melhor sistema de escrita existente [BINDI, 2015]. O Hangul: “É uma das escritas mais cientificamente projetadas e eficientes do mundo” [KING, 1996, p. 219, tradução nossa]. De fato, o alfabeto coreano é bastante preciso e original [PAE, 2018, p. 335], afinal foi o produto deliberado de um planejamento linguístico encabeçado pelo rei Sejong, em 9 de outubro de 1446 [MARQUES, 2021]. Nesta data, nove de outubro, comemora-se o Dia do Hangul (한글날) na República da Coreia, o mesmo evento é celebrado no dia quinze de janeiro na Coreia do Norte. Desse sistema de escrita conhecemos as explicações e os porquês de suas formas e regras, sobretudo por terem sido esmiuçadamente expostas na obra Hunminjeongeum ou Hwunmin cengum (“Os sons corretos para a instrução do povo”) de 1446 – livro que havia sido perdido e foi redescoberto apenas em 1940 [KING, 1996, p. 219]. Formação linguística: do Hunminjeongeum ao Hangul O Hunminjeongeum (훈민정음), elaborado pelo rei Sejong, é constituído por 28 letras, sendo 11 vogais e 17 consoantes. Trata-se de um alfabeto fonético com um sistema de escrita segmentado, onde cada caractere corresponde a um fonema (diferente do Hanzi chinês, onde cada caractere representa uma palavra). A formação de palavras em coreano não se dá de maneira linear, como em outros alfabetos, mas sim com a disposição de consoantes e vogais em blocos silábicos (por exemplo, o nome “Hangul” escrito linearmente: ㅎㅏㄴㄱㅡㄹ; em blocos silábicos: 한글) [LEE, 2013, p. 51]. As explicações para a constituição do alfabeto coreano deram-se através do Hunminjeongeum haerye Novos Estudos em Extremo Oriente 131 (Hanja: 訓民正音解例; Hangul: 훈민정음 해례), documento dividido em duas grandes partes: Yeuipyeon (例義篇) e Haeryepyeon (解例篇). A primeira, “Seção de Exemplos e Definições”, escrita pelo próprio rei Sejong, contém um prefácio sobre o propósito da criação das novas letras, além de uma seção mais longa para explicar cada uma das vogais e consoantes e a maneira como são combinadas para formar as sílabas. Já no Haeryepyeon (“Seção de Explicações e Exemplos”), escrita pelos estudiosos de Jiphyeonjeon (집현전), sob ordem do rei, é dividida em 6 (seis) capítulos: Jejahae (制字解, “Explicação do Desenho das Letras”), Choseonghae (初聲解,“Explicação dos Sons Iniciais”), onde apresenta as 17 consoantes que aparecem em posição inicial na sílaba; Jungseonghae (中聲解, “Explicação dos Sons Mediais”), que apresenta as 11 vogais; Jongseonghae (終聲, “Explicação dos Sons Finais”), sobre as consoantes que aparecem na posição final da sílaba; Hapjahae (合字解, “Explicação dos Métodos para Combinação das Letras”), como se dá a formação das sílabas; Yongjarye (用字例, “Exemplos do Uso das Letras”), em que palavras coreanas são escritas com o novo alfabeto; além de posfácio feito pelo estudioso Jeong In-ji (1396-1478) [UNESCO, 1997]. Segundo consta no capítulo Jejahae (制字解), sobre a origem dos desenhos das letras, os caracteres do alfabeto coreano foram feitos para “imitar formas”. As cinco consoantes básicas (ㄱ, ㄴ, ㅁ, ㅅ, ㅇ) representam o movimento dos órgãos articulatórios ao serem pronunciadas – por exemplo, quando a ponta da língua toca na crista alveolar, o som de ㄴ[n] é emitido. Em relação às vogais (,ㅡ, |), seu formato foi inspirado nas ideias Neoconfucionistas de “Três Poderes” – Céu, Terra e Homem – derivadas da obra I Ching (易經), o Livro das Mutações (composto antes da dinastia Chou, c. 1150-249 AEC) [PRATT; RUTT, 2013, p. 174]. As consoantes básicas também são frequentemente associadas aos cinco elementos (Árvore, Fogo, Terra, Metal, Água), cinco estações (Primavera, Verão, Último verão, Outono, Inverno), cinco notas musicais (Gak, Chi, Gung, Sang, U) e as cinco direções (Leste, Sul, Centro, Oeste, Norte), presentes na filosofia oriental [LEE, 2013, p. 49]. Por ㄱ[k], ㄴ[n], ㅁ[m], ㅅ[s], e ㅇ[ɦ] fazerem referência ao local de articulação, a seção Jejahae do Hunminjeongeum haerye teve a explicação dos sons dividida em: molares, linguais, labiais, incisivos e laríngeos. Dependendo das características fonéticas, as consoantes podem ser divididas em: wholly clear, partly clear, wholly muddy, neither clear nor muddy. Respectivamente, sob a ótica da fonologia moderna, essas denominações equivalem: surdo ou desvozeado, aspirado, tensionado, sonoro. Já em relação aos pontos de articulação, o som molar corresponde ao velar, labial ao bilabial, laríngeo ao glotal, lingual ao apical, incisivo ao dental [LEE, 2013, p. 45]. No que concerne à intensidade sonora, as cinco consoantes básicas são consideradas as de pronúncia fraca. Para representar um som mais forte, foram adicionados traços aos seus desenhos, dando origem às novas letras: ㅋ[kh], ㄷ[t], ㅌ[th], ㅂ[p], ㅍ[ph], Novos Estudos em Extremo Oriente 132 ㅈ[ts], ㅊ[tsh], ㆆ[ʔ], ㅎ[h]. Há, ainda, outras consoantes cujas formas foram alteradas, resultando em: ㆁ[ŋ], ㄹ[l], ㅿ[z], entretanto a adição de traçosnão fortaleceu suas sonoridades [LEE, 2013, p. 38-39]. Com relação às vogais, o Hunminjeongeum haerye apresenta onze caracteres, dos quais três são considerados básicos:  [ʌ], ㅡ[i], ㅣ[i]. Diferente das consoantes, que possuíam sons equivalentes no chinês, os sons médios (posicionados no meio da sílaba) não tinham correlatos na fonologia tradicional chinesa. Portanto, as vogais do alfabeto coreano apresentavam um conceito fonológico novo para o Leste Asiático do século XV [LEE; RAMSEY, 2011, p. 120]. Em relação ao formato das vogais, rei Sejong se inspirou no princípio de que os sons humanos e os fenômenos universais advêm da harmonia entre Yin e Yang, presente no Neoconfucionismo. Sendo assim, ㅡ [i] é desenhada plana como a Terra, que possui qualidade de Yin;  [ʌ] é redonda como o Céu, ligada ao Yang; |[i] representa o Homem em pé, sendo considerada harmonicamente neutra – uma vez que pode coexistir tanto com as vogais Yin quanto com as Yang. Os demais oito sons vocálicos são provenientes da união das três letras básicas ( , ㅡ, ㅣ) e estão, também, condicionados ao Yin-Yang: ㅜ[u], ㅓ[ə], ㅠ[yu], ㅕ[yə] possuem [ʌ] localizada na parte inferior/interna, ou seja, essas vogais emergiram da Terra (Yin); enquanto ㅗ[o], ㅏ[a], ㅛ[yo], ㅑ[ya] possuem  [ʌ] localizada em cima/fora, já que surgiram do Céu (Yang). Esse tipo de classificação permite que vogais Yin se relacionem bem com outras vogais Yin, enquanto as Yang combinam melhor entre si [LEE, 2013, p. 49-50]. Segundo descrito no Hunminjeongeum haerye, as consoantes também podem ser combinadas para formação de novas letras. Para isso são apresentados dois métodos diferentes: Byeongseo (Hangul: 병서; Hanja: 並書), no qual as letras são agrupadas lado a lado (ㄲ, ㄸ, ㅃ, ㅆ, ㅉ, ㆅ) e Yeonseo (Hangul: 연서; Hanja: 連書), em que duas consoantes são empilhadas para formar outra (ㅸ, ㆄ, ㅹ, ㅱ) [LEE, 2013, p. 53-54]. Com o passar do tempo, muitas dessas letras criadas tornaram-se obsoletas. Atualmente o Hangul possui 51 Jamos (자모) ou Natsuri (낱소리), nomenclaturas dadas às unidades que compõem o alfabeto coreano. Estão inclusas as 24 letras básicas: 10 vogais (ㅏ, ㅑ, ㅓ, ㅕ, ㅗ, ㅛ, ㅜ, ㅠ, ㅡ, ㅣ) e 14 consoantes (ㄱ, ㄴ, ㄷ, ㄹ, ㅁ, ㅂ, ㅅ, ㅇ, ㅈ, ㅊ, ㅋ, ㅌ, ㅍ, ㅎ); além das 5 letras duplas (ㄲ, ㄸ, ㅃ, ㅆ, ㅉ), dos 11 ditongos (ㅐ, ㅒ, ㅔ, ㅖ, ㅘ, ㅙ, ㅚ, ㅝ, ㅞ, ㅟ, ㅢ) e dos 11 encontros consonantais (ㄳ, ㄵ, ㄶ, ㄺ, ㄻ, ㄼ, ㄽ, ㄾ, ㄿ, ㅀ, ㅄ) [LEE, 2019, p. 5-6]. Considerações finais Atualmente a cultura coreana tem sido bastante observada em todo o mundo, inclusive no Brasil – seja pelos avanços tecnológicos, pelas séries televisivas ou pela música popular (K-pop). Isto tem gerado um maior conhecimento a respeito do idioma e alfabeto coreanos que se apresentam como importantes Novos Estudos em Extremo Oriente 133 caracteres para sua história e cultura. Com esse texto buscamos introduzir os elementos que levaram à criação e adoção do Hangul, cuja história se apresenta bastante condicionada às tenções político-sociais enfrentadas pela Coreia. Do Hunminjeongeum, proposto pelo Rei Sejong, ao atual Hangul, foram mais de quinhentos anos até ser finalmente aceito e estabelecido como sistema de escrita oficial. A cientificidade e simplificação que envolviam o projeto de desenvolvimento do Hangul fizeram deste alfabeto uma arma importante no combate aos altos índices de analfabetização presentes na Coreia do século XV, motivo pelo qual seu promulgador (o rei Sejong) nomeia, desde 1989, o maior prêmio de contribuição à luta contra o analfabetismo no mundo (UNESCO King Sejong Literacy Prize) [Cf. UNESCO, 2021]. Ademais, ressalta-se que o alfabeto coreano vem influenciando e sendo influenciado ao longo do tempo. Por exemplo, na atualidade o idioma vem incorporando diversas palavras do inglês que circulam cotidianamente na Coreia do Sul e passam por um processo de adaptação para a fonologia do coreano, fenômeno nomeado Konglish (콩글리시) [Cf. MARINO, 2020]. Em suma, vislumbramos uma introdução ao alfabeto coreano, em sua história e linguística, percebendo-o como um projeto deliberado e bem-sucedido para que a língua coreana não estivesse limitada ao uso dos caracteres chineses. Referências Mayara Bassanelli é graduanda em Licenciatura em Letras Português-Inglês pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Formada pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (CTIG/UNESP), possui Técnico de Informática Industrial. Atuou em projetos de pesquisa e extensão pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal (UFMS/CPAN). Membro do grupo de pesquisa Literatura e Tempos Sombrios/UFMS, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Carina Duarte. Felipe Daniel Ruzene é graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e no Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (BAT). Também estudou no Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (CTIG/UNESP), na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAr) e na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Membro discente do grupo de pesquisa Antiga e Conexões/UFPR, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Renata Senna Garraffoni. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. BINDI, Andressa. Conhecendo o Hangul, 2015. 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Se disfarçando de belas mulheres ou sendo as mensageiras da deusa Inari, a deusa do arroz e da fertilidade, o folclore das raposas sempre foi muito presente e muito popular no período Edo, instigando a curiosidade dos japoneses e buscando contos que falassem sobre esse ser sobrenatural que causava tanto interesse na população. As raposas tinham suas várias facetas e versões, sendo vistas como seres “malignos” como também “benignos”, dependendo da região, estavam sempre entre a ambiguidade do bem e do mau, bastando apenas uma análise do comportamento desses belos yokais serem feitos por um humano para lhe dar o veredicto final. As várias facetas das raposas podiam variar entre pregar peças e serem amáveis e ajudar os que necessitam. Mas a pergunta mais interessante que podemos fazer também é: Por que o período Edo? O próprio período nos apresenta uma era de grande paz que foi imposta pelo xogunato Tokugawa, que buscava desenvolver tanto a economia, quanto a sociedade e consequentemente, a cultura. Uma nova era cultural no Japão começou graças ao período Edo e por conta do êxodo rural que ocorreu com a caça as espadas pelo xogunato Tokugawa (Walker, 2017). Com japoneses de várias regiões do país, e de várias classes sociais, trouxeram consigo suas visões culturais e seus próprios ritos para a cidade, o que ocasionou essa nova cultura cheia de cores, danças e pinturas. Além, é claro da nova arte popular que chegou para a população e despertou o interesse da classe de comerciantes. E foi nesse período em que a história acabou se misturando aos mitos, onde não se sabiam o que era mito e o que era real, o que nos ajuda a entender como é tão presente o folclore japonês no seu dia a dia a ponto de ser tão comum quanto fazer suas tarefas diárias. Sobre o comportamento sociocultural sobre as lendas das raposas japonesas na Era Edo, trazendo a problemática do que é cultura japonesa e quebrando alguns estereótipos que acabaram sendo expostos pelas mídias da cultura pop japonesa, especificamente o folclore das raposas. A visão que trazem é de um ser místico malicioso, trazendo uma generalização sobre o que seria o folclore das raposas e ignorando as outras visões regionais sobre as lendas, trazendo uma única visão das raposas como apenas mais um youkai travesso, salvando Novos Estudos em Extremo Oriente 136 poucas mídias que as retratam as outras visões de raposas, não sendo uma simples youkai trapaceira, mas a ideia única do que é o youkai raposa, ainda é muito presente no pensamento popular e na cultura pop. No folclore, as raposas podem ser boas ou más, sendo mensageiras de Inari ou serem uma divindade quando atinge as 9 caudas (em uma parte das lendas, as raposas ganham uma cauda a cada 100 anos, somando 9 a fazendo ascender como divindade ou deidade) ou sendo como Tamamo no Mae, a raposa maligna mais conhecida entre as lendas. Por que discutir sobre essas lendas é importante? Porque essas discussões trazem uma luz para o que é realmente a cultura japonesa, o pensamento social japonês do período Edo, e a sua compreensão social e desenvolvimento cultural durante o período Edo. Para compreendermos o porquê o folclore se desenvolveu mais na era Edo, principalmente o das raposas e o porquê são lendas que vivem através das eras. Mas como ocorreu esse desenvolvimento e qual foi o incentivo? A era Edo conforme Brett Walker (2017), é conhecida como a era da grande paz, que teve seu início em 1603 quando o terceiro unificador do Japão, Tokugawa Ieyasu (1542-1616), estabeleceu o Bakufu de Edo. Em volta do século XVII a paisagem política tornou-se muito mais ordenada desde o início do Sengoku Jidai (guerra dos Estados Combatentes), exceto pela revolta de Shimahara (1637-1638) e rebeliões camponesas dispersas em vários graus de seriedade. O Japão passou por uma breve estabilidade no início dos anos modernos, assim incentivando o crescimento econômico e cultural. Com a Europa mergulhada em guerras em meados do século XVII, o Japão evitou guerras ao máximo por estar debilitado e não aguentaria mais uma guerra interna, e com isso acabou desenvolvendo as instituições políticas, econômicas e culturais o que resultou no impulsionamento de uma nação moderna mais à frente. O crescimento urbano do Japão no século XVII foi de grande importância para o seu desenvolvimento, principalmente quando Toyotomi Hideyioshi realocou os samurais do interior para as cidades-castelos quando começou a caça às espadas (1588) quando ocorreu a desmilitarização, criando uma das maiores cidades do mundo, a cidade de Edo, que foi tão importante a ponto de o período das cidade-castelo ficar conhecido como Era Edo. Os samurais que foram realocados, tinham a natureza de produzir pouco por conta de sua ordem social, mas também consumiam muito, o que ajudou na formação da população das cidades. Por conta do vasto desenvolvimento cultural no período Tokugawa, poderemos analisar melhor o comportamento social perante o folclore das raposas, por ser considerado o mais presente a ponto de aparecer como peça no teatro Kabuki, bastante conhecido pelos plebeus e samurais das cidades-castelos. Conhecido por suas maquiagens exageradas e atuações igualmente exageradas, o teatro Kabuki era bastante aclamado na era Edo, tendo sua fundação no mesmo período, suas peças eram feitas somente por atores homens e as histórias eram contos que existiam na cultura japonesa, incluindo contos folclóricos que Novos Estudos em Extremo Oriente 137 podem ter sido disseminados a partir daí para a sociedade japonesa e para o seu convívio. Quando paramos para a analisar sobre o Japão, encontramos pelo caminho muito estereotipo e muitas fontes duvidosas, que temos que ter atenção dobrada para analisá-la, as vezes pode trazer uma informação importante sobre o tema ou apenas mais desinformação que tem que ser descartada, é com esse cuidado que temos de ter quando estudamos sobre o folclore japonês e sobre o folclore das raposas. Por causa de sua visão pop sobre os folclores, acaba criando-se um estereotipo do que deveria ser, mas que não é verdadeiro. A sociedade Edo, sofreu uma grande mudança em pouco tempo, tanto na visão social influenciada por um Neoconfusionismo quanto um desenvolvimento cultural massivo, trazendo não só o teatro Kabuki, como também uma nova visão artística chamada Ukiyo-e, que muitas das artes são representações de yokais, e a mais popular sendo as artes das raposas, como algumas das artes de Yoshitoshi. A era Edo, como uma era de grandes mudanças, também nos traz uma nova visão do que é o sobrenatural sendo natural, o folclore sendo mais uma parte do cotidiano na era Edo. Com as raposas não era diferente, elas poderiam ser vistas como belas mulheres de cabelo preto e comprido e rostos finos que só queriam arranjar uma família e um lugar para viver em paz. Serem associadas como mensageiras da deusa Inari, e assim se tornarem algo divino e de adoração, ou apenas serem travessas e adorarem pregar peça nas pessoas ou até roubarem seus pertences como forma de diversão. A várias visões sobre o folclore das raposas, cada uma tem sua interpretação, não existe a versão certa e nem a versão errada e sim uma diversificação do que seria a raposa em si. Contudo, precisamos de foco nas influências sociais que esse folclore das raposas trouxe. Medo? Admiração? Adoração? Amor? Ódio? O que as pessoas sentiam dentro do senso comum do período Edo quando ouviam algo relacionados as raposas? Contudo, as raposas tinham seu espaço social dentro da era Edo e esse espaço perdurou através do tempo e na atualidade. A partir do momento que o sobrenatural se torna natural, podemos perceber esse pensamento singular, para ocidentais pode ser estranho, mas para os asiáticos é muito comum. A era Edo foi oápice de criação de uma nova cultura que se espalhou pelo Japão, trazendo várias visões culturais quanto folclóricas que se misturaram dentro das cidades-castelos e apresentando novas culturas diversificadas e coloridas, com um novo rosto e como sinal de resistência ao xogunato Tokugawa. Mas também, o sobrenatural e o natural sempre estiveram em uma linha tênue, e poderíamos dizer que os japoneses estavam constantemente ligados a um sobrenatural que era tão natural quanto viver na correria do dia a dia. Yokais podem ser considerados raros e assustadores, podem ser o “bem” ou o “mal” dependendo do contexto. Em meio a tantas lendas, a das raposas foi uma das mais famosas e a qual se destacou em meio ao período Edo. Novos Estudos em Extremo Oriente 138 Relatos na literatura, como a famosa lenda da raposa Tamamo no Mae, chamavam a atenção da população sobre o mistério das raposas. Tamamo no Mae era uma raposa de nove caudas que surgiu no período Muromachi (1336-1573) e rodou o mundo inteiro, por onde passava, deixava um rastro de destruição. Encontrou seu fim no Japão quando o imperador Toba (1103-1156) adoeceu e a descobrirem. Foi caçada e morta, e sua alma aprisionada em uma pedra por um monge depois de um exorcismo. Essa lenda ficou muito conhecida no período Edo, ocorrendo até que várias histórias sobre raposas desse estilo se misturassem, formando uma lenda só. Em março de 2022, essa pedra se partiu ao meio, trazendo uma grande repercussão pelo mundo e pelo Japão inteiro. Houve muitas explicações cientificas junto a esse fato, mas muitos japoneses ficaram mais preocupados com a rachadura da pedra por justamente ser a pedra que tradicionalmente prendia a alma de Tamamo no Mae e que poderia trazer uma onda de maus presságios para o Japão. Essa notícia sobre a pedra de Tamamo no Mae nos mostra o quanto a cultura ainda é forte e viva no dia a dia da sociedade japonesa, o que nos faz voltar novamente para a era Edo, para buscarmos entender esse pensamento cultural com a mitologia tão presente. Como já foi comentado, para estudarmos sobre yokais, que são figuras que estão entre o natural e o sobrenatural, buscamos os documentos de registros literários e artísticos de Edo, por ser o período com maior desenvolvimento cultural pela época da Grande Paz, que foi o maior período de desenvolvimento japonês, tanto para a economia quanto cultural e socialmente. Por conta das misturas de lendas regionais japonesas em Edo, temos uma amplitude de mitos e lendas contadas pela população que veio de áreas rurais. Ainda assim, nem todas as histórias foram registradas; muitas foram passadas oralmente, porque seus interlocutores na maioria das vezes não eram letrados ou mal sabiam ler ou escrever. Esse pensamento cultural ficou mais forte no período Edo justamente pelo seu desenvolvimento, quando começaram a surgir também a arte do povo para o povo. Escritores populares que caíram nas graças da população e artes em Ukiyo-e obscenas despertavam o interesse da classe de comerciantes no Japão, o que acabou se tornando bastante acessível para os novos ricos no Japão sem título de nobreza. Dentro dessa disseminação de várias versões das lendas, a das raposas foi uma das mais populares, não só pelos relatos, mas também pela ligação que elas tinham com Inari, a deusa do arroz e da fertilidade. Existem vários templos de Inari espalhados pelo Japão atualmente e como estátuas protetoras. Quando analisamos a cultura pop atual, vemos muitas versões de raposas apresentadas em algumas obras, como no exemplo mais famoso, o anime Naruto e Naruto Shippuden, que usam da versão mais maligna da raposa de nove caudas, mas que no decorrer da história, ela acaba se tornando boa. No jogo Okami temos outro exemplo de raposa maligna, que toma a forma de um dos personagens amistosos e induzo principal a roubar um artefato mágico para que ela pudesse se tornar uma deidade. E por último temos jogo Muramasa: The demon Blade, no jogo as raposas servem como guia para os Novos Estudos em Extremo Oriente 139 personagens principais atingirem seus objetivos, elas aparecem sempre em forma humana e dão conselhos para os personagens que os deixam em dúvida se querem continuar com o que estão fazendo ou não. Aqui temos os exemplos do que seria visto como “bem” e o “mal” para o yokai: entende-se que a índole pode mudar e favorecer aqueles usufruem do que o yokai dá, mas que nos olhos de outros lhe traz desvantagem, e por isso seria maligno. A raposa de nove caudas, na visão japonesa nacional, pode se tornar uma deidade poderosa, por conta de cada século ganhar uma cauda por acumular energia e conhecimento. É uma figura muito usada também na cultura pop japonesa por justamente ser uma lenda bem popular desde o período Edo. Contudo, o período Edo nos mostrou uma nova visão de cultura que perdurou por séculos. Esse conjunto de manifestações culturais ficou enraizado na população japonesa das cidades-castelos, que transmitiram as lendas através das manifestações culturais da época e que duram até hoje em suas versões regionais. Porém, também não se pode ignorar que a visão nacional acaba sendo dominante, deixando nas sombras outras visões de cidades rurais. Por conta da cultura da era Edo, devemos relembrar que o mito acabou se misturando à história; isso é um fator muito importante, por conta da associação de certos yokais ao povo japonês e o porquê de ser tão comum eles verem yokais com tanta naturalidade até hoje. Referências Autora: Possui graduação em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022); Coautora: Professora Associada III em História Antiga na UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Atlas of Japan. The Brown Reference Group plc. Ediciones.Folio, S.A. Barcelona, 2008. ASHKENAZI, Michael. Handbook of Japanese mythology. ABC-CLIO, Inc., 2003. FOSTER, Michael Dylan, 1965–. Pandemonium and parade: Japanese monsters and the culture of yokai. University of California Press, Ltd. London,2009. FOSTER, Michael Dylan. The book of yokai: mysterious creatures of Japanese folklore; with original illustrations by Shinonome Kijin. University of California Press, Ltd. London, England, 2015. HENSHALL, Kenneth G. História do Japão-2ª edição. EDIÇÕES 70,2018. SAKURAI, Célia. OsJaponeses. –2ª edição, 5ª reimpressão. –São Paulo:editora Contexto, 2019. SÁ, Michele. -Teatro Kabuki: das origens à contemporaneidade. –Artigo em Estudo Japoneses. 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Os jesuítas foram os primeiros a conseguir essa permissão, algo que só foi possível graças às ações do Visitador Alessandro Valignano, que concluiu que a manutenção de uma missão no Império chinês só seria possível a partir de um processo de acomodação cultural e que seu sucesso dependeria da capacidade dos missionários em aprender os costumes e a língua local. Os jesuítas iniciaram esse tipo de acomodação a partir das vestimentas e aparência dos monges budistas, da mesma maneira em que os religiosos da Companhia fizeram na missão do Japão. Todavia, os monges budistas na China não gozavam da mesma posição social que os japoneses. Na China, apesar de serem numerosos, amaioria dos monges budistas não eram conhecidos por sua erudição e seu contato com a elite chinesa era esparso, o que dificultava a manutenção da missão, pois os religiosos europeus precisavam da amizade e da proteção da elite chinesa e dos funcionários de estado. Dessa forma, a abordagem jesuíta foi modificada uma década depois, devido a influência de Valignano e de Matteo Ricci, que propôs uma mudança no método, sugerindo a adoção das vestimentas, aparência e do estilo de vida dos letrados chineses, além do estudo das obras do filósofo Confúcio. O objetivo de Ricci com essa mudança era de dialogar com a elite letrada da China, que embora não possuísse a quantidade de seguidores do budismo entre a população geral, era presença constante nos altos cargos de Estado, o que facilitaria a proteção e manutenção da missão em curto prazo. Uma das características das diversas escolas de pensamento confuciano era a sua relação com a leitura e a escrita. Toda a doutrina confuciana estava presente em diversos livros, comentários e revisões. Neste contexto, a escrita jesuíta acabou por se tornar uma importante ferramenta em seu método de evangelização. Os missionários participantes da missão da China produziram uma série de obras escritas em chinês, que contavam com traduções de clássicos europeus e obras originais, com o intuito de atrair a atenção dos letrados confucianos e apresentar-lhes a cultura, ciência, filosofia e principalmente, a religião europeia. Novos Estudos em Extremo Oriente 142 Uma das obras originais mais importantes produzidas pelos jesuítas durante este primeiro período da missão foi o Tianzhu Shiyi (O verdadeiro significado do Senhor do Céu), elaborada por Matteo Ricci e publicada em 1603. A obra de Ricci se utiliza de diversos aparatos retóricos e embora fosse classificada como um catecismo pelo seu autor, o real objetivo da obra era demonstrar uma alternativa de restauração da doutrina confuciana clássica com a ajuda da razão cristã, ao invés de focar na instrução do cristianismo em si, ou seja, era uma obra voltada para não-cristãos chineses [CERVERA JIMENEZ, 2002, p.223]. Todavia, antes de demonstrar a ligação entre os aparatos retóricos clássicos e as obras de Ricci, é preciso voltar nosso olhar para a Europa, a fim de demonstrar como o currículo humanista dos colégios da Companhia de Jesus possibilitou aos jesuítas a utilização de conceitos retóricos e filosóficos durante o seu trabalho missionário. A educação jesuítica Na Europa, os membros da Companhia de Jesus possuíam um currículo cultural rico, e embora sua educação fosse voltada para fins religiosos, muitos jesuítas acabavam por se tornar confessores e conselheiros de príncipes e membros das cortes, em razão de sua sabedoria, erudição e inteligência. A educação se dava em colégios, que incluíam escolas de todos os níveis e universidades fundadas em vários países europeus e onde quer que as missões operassem, como o Colégio de Macau, na China. Renomada pelo seu rigor educacional, as escolas jesuítas tinham como integrantes não só os membros da Ordem, mas muitos filhos de nobres europeus que acabavam por não seguir a carreira religiosa. O método de estudos jesuíta seguia as instruções contidas no Ratio Studiorum, um plano de estudos oficial, cuja forma definitiva foi editada por Claudio Acquaviva em 1599. No que tange a retórica e a filosofia, o expoente mais estudado pelos jesuítas era Aristóteles, enquanto na teologia o posto era de Tomás de Aquino, que conseguiu combinar a doutrina católica com um sistema de pensamento de cunho racional. O curso de estudos jesuíticos na época de Matteo Ricci consistia em dois anos de estudos sobre retórica, três de filosofia e mais três de teologia, além do estudo de línguas, como o latim, grego e hebreu. A decisão da Ordem em ensinar autores pagãos da antiguidade foi influenciada pelo humanismo, movimento intelectual que levou ao redescobrimento e apreciação das culturas grega e latina clássica, embora os textos fossem editados pelas autoridades eclesiásticas para que exibissem apenas os conteúdos que a Igreja julgasse pertinente. As leituras de Ricci incluíram autores latinos como Marcial, Horácio, Ovídio, Virgílio e Quintiliano, assim como os gregos Homero, Hesíodo, Tucídides, Aristóteles e Demóstenes. O paradigma a ser seguido no setor latino de estudos era Cícero, considerado na época um exemplo insuperável da retórica romana. A escrita de Cícero era o modelo a ser seguida nos colégios jesuítas, considerada elegante e eloquente. Em relação ao paradigma grego, eram estudadas a lógica, ética, retórica e metafísica contida em Aristóteles. Muito embora os estudos filosóficos fossem feitos de acordo com a regra de Novos Estudos em Extremo Oriente 143 lógica aristotélica e em nome da razão, o fim ainda era teológico [FONTANA, 2011, pp.7-8]. O papel da retórica nos escritos de Matteo Ricci O estudo constante e os hábitos acadêmicos dos jesuítas seriam de muita valia durante a missão da China, onde os missionários enfrentavam o desafio de serem os primeiros europeus a tentarem entender a filosofia confuciana. O estudo das tradições nativas era essencial para que sua mensagem religiosa despertasse a curiosidade e atenção dos letrados chineses. Essa tarefa foi largamente beneficiada pelos estudos retóricos e a predisposição jesuítica para debates, que era influenciada em diversos seminários e competições nos colégios jesuítas, na tentativa de persuadir os chineses dos valores da doutrina cristã e de sua compatibilidade com o confucionismo. Quanto mais Ricci e os outros missionários estudavam os clássicos de Confúcio, mais se deparavam com um sistema que lhes parecia mais filosófico do que religioso. Os jesuítas também percebiam, nos antigos clássicos de Confúcio, ambiguidades que com a interpretação certa, estariam de acordo com a religião cristã. Este aspecto, somado ao hábito dos letrados confucianos de leitura e a sua aproximação com a filosofia, inspiraram as primeiras obras de Matteo Ricci em chinês. Em 1595 Ricci escreve o Jiaoyou Lun (Tratado Sobre a Amizade, baseado no Sententiae et Exempla, de André de Resende), centrado na amizade, que era considerada uma das relações fundamentais na China e também grandemente celebrada na Antiguidade europeia. Ricci busca inspiração nos clássicos gregos e latinos na composição de sua obra, cujo modelo de escrita também se espelha no Laelius, de Cícero, que era um diálogo sobre a amizade que acontece logo após a morte de Cipião, protaganizado por Gaius Laelius, o melhor amigo de Cipião e seus dois cunhados. A obra de Ricci começa com o recurso retórico de um diálogo fictício entre o jesuíta e o príncipe Kang Yi, o qual Ricci dedicou e presenteou o Jiaoyou Lun, durante um banquete. Na ocasião, o príncipe pergunta a Ricci se ele poderia explicar como a amizade é vista na Europa. Em sua resposta, o jesuíta faz uso de um discurso similar ao epidíctico (que tem como público alvo espectadores, fictícios ou não, que devem ser convencidos, além de censurar ou principalmente louvar algo ou alguém, no caso de Ricci, o conceito de amizade) [REBOUL, 1998, p.44] para apresentar setenta e cinco máximas selecionadas entre autores gregos, latinos e da Igreja. Ricci expõe as máximas de maneira a louvar e enobrecer a amizade, colocando-o acima das relações familiares, como na máxima 50, onde Ricci aponta que: “Os amigos superam a família em um aspecto: é possível para familiares não amarem um ao outro, mas não é possível com amigos” [RICCI, 2009, p.111]. As máximas do Jiaoyu Lun também serviam para demonstrar o quão vil podem ser as formas ruins de amizade, como os bajuladores: “O amigo que bajula não é um amigo, mas um mero ladrão que rouba e usurpa a amizade” [RICCI, 2009, p.125] Ou quando Ricci aponta que: “A intenção do médico é de usar o remédio amargo para curar a doença de uma pessoa; o objetivo do amigo bajulador é de usarpalavras doces para minar a saúde de uma pessoa” [RICCI, 2009, p.127] Como em outros discursos epidícticos, o “auditório” fictício de Ricci incluía não só o príncipe, mas todos os Novos Estudos em Extremo Oriente 144 outros convidados do banquete. A prática de suntuosos banquetes era comum na China Ming, onde letrados confucianos convidavam vários tipos de personalidades, inclusive budistas e taoistas, para jantares e longas conversas, com temas que variavam de política e religião a filosofia. As máximas de Ricci incluíam Horácio, Cícero, Aristóteles, Santo Agostinho, Marcial, Erasmo de Roterdã e Sêneca. Outras máximas foram buscadas de Ricci da memória e incluíam reflexões sobre a afeição, sentimentos para com o próximo, solidariedade, lealdade e entendimento mútuo [FONTANA, 2011, pp.127-128]. O Jiaoyou Lun também teve influência de um importante elemento na arte da retórica: a memória. Exercícios para a memória eram comuns durante o curso de retórica dos colégios jesuítas, considerado um recurso indispensável de um bom orador. Oradores como Cícero, a qual relatos diziam ser capaz de falar durante dias no Senado sem consultar notas de qualquer natureza, e era capaz de armazenar grandes quantidades de informações em sua mente, para usar em momentos oportunos. Esta era uma característica que também era marcante em Matteo Ricci. O jesuíta italiano possuía uma memória extraordinária. O próprio comentara em uma carta, em 1595, ser capaz de lembrar cerca de 500 asteriscos chineses após os ler apenas uma vez [FONTANA, 2011, p.37]. A incrível memória de Ricci era treinada a partir de técnicas mnemônicas inventadas pelos gregos antigos, que haviam sido resgatadas durante a Idade Média e se tornaram populares nos séculos XV e XVI, e que de acordo com Cícero em seu Do Orador, foram inventadas pelo poeta grego Simónides de Ceos [SCATOLIN, 2009, pp.259-260], que viveu no século V a.C. A referência de Cícero a Simónides e a lenda contada a respeito das habilidades mnemônicas do grego foram apresentadas por Ricci em um tratado chamado de Xiguo jifa, ou “Tratado das artes mnemônicas”. Tanto o Jiaoyou Lun e o Xiguo jifa foram uma espécie de treinamento para Ricci se acostumar com o estilo de escrita chinesa antes de publicar sua obra mais significativa, o Tianzhu Shiyi, que foi produto de dez anos de estudo e reflexão de Ricci sobre o confucionismo clássico e a principal ferramenta de seu método de evangelização baseada na acomodação cultural. A estrutura textual do Tianzhu Shiyi foi feita pensando em seu público alvo, os letrados chineses. Dessa forma, o texto é integralmente apresentado na forma de um diálogo entre dois sábios letrados, um ocidental, que expõe a doutrina cristã - e as formas com que ela interage e se relaciona ao confucionismo clássico - e um sábio chinês, que traz questões, objeções, observações e – em um movimento estratégico de Ricci – a maioria das críticas sobre o budismo e o taoísmo. Aproveitando-se da relação próxima entre religião e filosofia na China, Ricci em seu diálogo apenas expõe as partes do cristianismo que ele poderia provar com o uso da razão e da lógica e omitindo aquilo que apenas pudesse ser aceito através da fé, além de suprimir detalhes que poderiam confundir ou desagradar ao seu público alvo, como o sofrimento e morte de Jesus. O discurso retórico utilizado por Ricci no Tianzhu Shiyi não segue totalmente um modelo único, embora o estilo deliberativo esteja mais presente. Na conversa fictícia entre os dois sábios, o ocidental esclarece as dúvidas de sua Novos Estudos em Extremo Oriente 145 contraparte chinesa de maneira a aconselhar ou desaconselhar, guiando sempre o sábio chinês através de suas respostas, com o objetivo final de persuadir sua contraparte chinesa e seu leitor, de que o cristianismo complementa o confucionismo, inclusive a partir dos próprios pressupostos de Confúcio. A presença de conselhos e da persuasão são as marcas do discurso deliberativo [REBOUL, 1998, p.44]. Em várias passagens, Ricci faz uso de argumentos indutivos como forma de expor uma posição, um tipo de argumentação comum no modelo de discurso deliberativo. Um exemplo deste caso acontece no momento em que os sábios estão discutindo sobre a existência do céu e do inferno e se um verdadeiro letrado deveria acreditar nele ou não, algo que a doutrina confuciana não elabora com detalhes, mas da qual que existem noções similares no budismo e no taoísmo. Dessa forma, o sábio ocidental afirma: “Sobre o céu e o inferno, na China os budistas e taoistas acreditam, e o confuciano que for sábio também. Todas as grandes nações do Leste e do Oeste não tem dúvidas sobre isso. As Escrituras Sagradas do Senhor do Paraíso fazem referência a ambos. Eu mesmo, em outras ocasiões revelei e provei essa doutrina. Então, ele que persiste em negar, não pode ser considerado um verdadeiro sábio” [RICCI, 2016, p.275] Perto do fim da vida, Ricci também publicou, em 1608, um curto tratado, onde aborda verdades morais que seriam consideradas evidentes para um cristão, mas que poderiam não ser vistos dessa forma para um chinês. Chamado de Jiren Shipian (Dez Ensaios Sobre o Homem Extraordinário], a obra tinha por objetivo ser um “desafio amigável” ao senso comum da China era persuadir os leitores a se libertarem de algumas crenças enraizadas em sua cultura, para que pudessem aceitar a mensagem espiritual do cristianismo com mais facilidade. Ricci tira inspiração de seus debates e conversas com amigos confucianos e de pensadores gregos e cristãos, apresentando então dez diálogos fictícios utilizando a si mesmo e a outras pessoas de seu convívio como participantes, tal qual seus amigos Xu Guangqi e Li Zhizao, e os ministros Li Daí e Feng Qi. Para exemplificar o objetivo de Ricci na obra, um dos paradoxos tratados por ele é o da morte, que era considerado um forte tabu na China, ao ponto de a maioria das pessoas não a mencionar, com medo de atrair má sorte. Também eram famosos os sábios que passavam a vida procurando poções ou meios de atingir a imortalidade, principalmente entre os taoístas. Em contraste com o medo do “nada” e do “vazio” que os chineses acreditavam ao chegar no fim da vida, Ricci expôs a visão paradoxal de que a morte não deveria ser temida, aconselhando seus leitores a sempre manterem a serenidade em seus pensamentos, na esperança da vida eterna que aguardava a todos os que acreditavam, e que de acordo com a doutrina católica, todo o sofrimento da vida terrena acabaria e aqueles que tivessem vivido de forma justa e correta seriam recompensados no paraíso [FONTANA, 2011, pp.261-262]. Novos Estudos em Extremo Oriente 146 Embora não tivesse um apelo retórico tão forte quanto o Tianzhu Shiyi, o Jiren Shipian também continha uma forma de discurso similar ao deliberativo, com a exposição dos paradoxos e o aconselhamento de Ricci quanto a utilidade (ou normalmente a falta) da manutenção de certas crenças chinesas. Conclusão Os jesuítas que atuaram durante a missão chinesa tinham diante de si uma difícil tarefa de conversão. Sem contarem com o apoio de um exército real e de todo um aparato militar ou colonial, como na Índia e no Brasil, os missionários contavam apenas com a sua capacidade de aprender a língua local, estudar suas crenças e filosofias chinesas para que assim pudesse persuadir toda uma classe letrada de confucianos e funcionários de Estado. A aproximação do confucionismo mais como um sistema filosófico e menos com um sistema religioso, na visão dos missionários, possibilitou aos jesuítas fazer uso de todos os conhecimentos que seu currículo humanista tinha a oferecer. Neste ponto, o conhecimento da filosofia grega e latina e o uso correto da retórica clássica se tornaram ferramentas indispensáveis na tarefa de conversão que os missionários tinham pela frente. A partir dos debates, fossem eles em pessoa ou a partir de livros, os jesuítas fizeramuso estratégico da arte da persuasão para aproximar dois mundos tão diferentes quanto o europeu e o chinês e ainda fazer entender a sua mensagem religiosa. Referências Renan Morim Pastor, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela UFRRJ. Bolsista CAPES. CERVERA JIMENEZ, José Antonio, La Interpretación ricciana del confucianismo. Estudios de Asia y África (on-line) 2002, XXXVII (maio-agosto) ISSN 0185-0164. FONTANA, Michela. Matteo Ricci: A Jesuit in the Ming Court. Maryland. Laham: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2011. REBOUL. Oliver. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998 RICCI, Matteo. On Friendship: One Hundred Maxims for a Chinese Prince, trans. Timothy Billings. New York: Columbia University Press. 2009. RICCI, Matteo. The True Meaning of The Lord of Heaven. Revised Edition by Thierry Meynard, S.J. Translated by Douglas Lancashire and Peter Hu Kuo-chen, S.J. Boston. Institute of Jesuit Sources, Boston College. 2016. SCATOLIN, Adriano. A Invenção no “Do Orador” de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares, I, 9, 23. Tese de Doutorado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Novos Estudos em Extremo Oriente 147 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O GOVERNO E A SOCIEDADE CHINESA DURANTE O PRIMEIRO SÉCULO DA DINASTIA QING por Renata Ary Uma breve introdução sobre os Qing: Séculos XVII - XVIII Os Qing foram uma dinastia chinesa estrangeira [Manchu] e cujo império durou por aproximadamente três séculos - de 1662 a 1911. A glória do império permeou entre 1662 e 1800. Foi a última dinastia imperial da China, transitou desde o máximo esplendor até a decadência que desencadeou na desintegração do sistema imperial chinês e deu espaço à República Chinesa. Durante os séculos XVII e XVIII, os imperadores Qing: Kangxi [1661-1722], Yongzheng [1723-1735] e Qianlong [1735-1796] reinaram como verdadeiros soberanos numa china cuja população ultrapassava, à época, 300 milhões de habitantes. Por quase dois séculos, reinaram em um ambiente de paz, prosperidade e esplendor como o maior império da história da china. A fim de garantir um governo mais humanitário, os Qing instituíram na China a sua ideologia oficial que ia desde o confucionismo à instituição da prova de mérito para ingressar na carreira pública. Apesar de instituir o confucionismo, os imperadores Qing eram budistas, falavam sua própria língua [o Manchu] e conservavam seu interesse pela caça. Foi um governo que enaltecia o absolutismo, a exaltação do estado e o poder do soberano e ao mesmo tempo, era animado pelos ideais de progresso. A cultura artística, em especial as porcelanas Qing e a arte arquitetônica, eram esplendorosas e denotavam o êxito da dinastia estrangeira Manchu sobre a China. À época, os Manchus representavam apenas 2% do total da população chinesa. De acordo com Beja [2019, p. 206] alguns historiadores atribuem o êxito da dinastia Qing à sua habilidade de adaptar-se à cultura chinesa, à adoção do confucionismo para ganhar a confiança da população e a lealdade dos súditos, e a habilidade manchu de conciliar os seus ideais culturais com os ideais chineses através da conciliação e sem o uso da força. Outros historiadores, no entanto, realçam que os Qing usavam a força e a intimidação para garantir privilégios aos Manchus marcados pela discriminação e separação entre estes e as demais etnias, como por exemplo, a vestimenta dos Manchus era diferente dos demais, os homens usavam uma longa trança atrás da cabeça e Manchus não poderiam casar-se com não-Manchus. Ademais, de acordo com estes historiadores, os imperadores Qing usavam a força e a intimidação para confiscar terras, garantir o monopólio do ginseng e foram um governo marcado pela corrupção. Para Gernet [1974, p. 13], os Manchus “instalaram-se na China Novos Estudos em Extremo Oriente 148 como uma raça de senhores destinada a reinar sobre uma população de escravos, tal como o tinham feito os Mongóis” e “implantaram um política moralizante, racionalista e neo-confucionista”. A questão é controversa. Durante o século XVII, os Manchus viviam na Manchúria e na península de Liaodong, região norte e noroeste da China. Eram considerados selvagens, bárbaros. Dedicavam-se à caça, à pesca e comercializavam pele e ginseng em troca de sal, telas e instrumentos de ferro. Viviam em tribos subdivididas em clãs. Posteriormente evoluíram do sistema tribal para um sistema quase feudal no qual cultivavam a terra [agricultura] e mantinham escravos. No século XVI, se especializam em artesanato e aprenderam a fabricar suas próprias armas. A princípio os Ming tentaram manter os Manchus separados da china através da força, e como não lograram êxito, mantiveram uma relação de intercâmbio matrimonial e de presentes, e instituíram um sistema tributário chinês. Em 1646, os Manchus invadiram o Sul da China, tomaram Yangzhou e após a queda de Nanquim, capturaram e executaram Honggnang, o príncipe Ming. Para Gernet [1974, p. 13] “a conquista foi conduzida por uma selvageria” e houve um massacre geral da população. Em 1647, Dorgon assumiu a regência na China, instituiu uma política discriminatória chinesa, utilizou mão de obra-escrava (prisioneiros de guerra e camponeses foram despojados de seus bens e passaram a ser considerados mercadorias - poderiam ser comprados e vendidos) e garantiu privilégios aos Manchus como classe dominante. Impôs a obrigatoriedade do corte de cabelo manchu [bianzi] a todos os chineses como expressão de lealdade à toda a dinastia. Após a morte do regente Dorgon, Shunzi [1650], de 13 anos de idade, assumiu o poder como o 1º imperador Qing. Em 1662, Kangxi [4º imperador do clã Aisin Gioro] tornou-se o primeiro grande imperador Qing da china e instituiu um governo centralizado. Kangxi [1662-1722] foi considerado o imperador mais importante da dinastia Qing e o primeiro soberano a se apresentar como confucionista, não obstante o respeito que tinha pelo Cristianismo. Publicou um edito de tolerância religiosa e manteve um governo centralizado. Interessou-se pelos clássicos confucionistas, subsidiou a publicação de dicionários de caracteres chineses e uma enciclopédia com mais de 5000 volumes a fim de patrocinar as letras, as artes, a manufatura, a porcelana e a caligrafia. Determinou que os príncipes estudassem a língua chinesa. Era um bom cavaleiro, manteve a tradição da caça e reservou os postos mais altos do governo para os Manchus. Foi considerado um homem inteligente, hábil, trabalhador e amante do conhecimento, apesar de ser considerado severo e cruel. Perseguiu alguns letrados e eunucos. Em 1713 congelou os impostos sobre a terra e conteve diversas rebeliões internas de generais poderosos. Durante o seu reinado, conquistou o Taiwan, a Mongólia do norte, a Ásia central e garantiu a soberania da China sobre o Tibet. Freou o avanço dos Russos pelo pacífico e em 1689 firmou com a Rússia o primeiro tratado da China com uma potência europeia – o tratado de Nerchinsk. [Beja, 2019, p. 211-212]. E o povo, durante o seu governo, desfrutou de uma prosperidade nunca antes vivida. Novos Estudos em Extremo Oriente 149 Kangxi teve 56 filhos, destes sobreviveram 08 homens e 20 mulheres. Após a sua morte, seu quarto filho - YongZhen [5º imperador], após intrigas para alcançar o poder [alguns historiadores acreditam que ele assassinou o seu pai], assumiu o trono [na China do século XVIII não havia legislação sucessória e o herdeiro ao trono era nomeado pelo próprio imperador, daí as várias intrigas e mortes com o objetivo de alcançar o poder]. Yongzhen permaneceu no poder entre 1723 e 1735. Foi um imperador eficiente apesar de intolerante e rígido. Devido às incertezas sobre a sua legitimidade como sucessor ao trono, governou alicerçado no autoritarismo e cercou-se de pessoas de sua confiança a fim de impor suapolítica de governo. Teve diversos desentendimentos com os eruditos [letrados], tomou medidas para acabar com a corrupção sobre a arrecadação dos impostos e acabou com o privilégio de algumas classes sociais, inclusive extinguiu a isenção fiscal das classes dominantes. Manteve em segredo, até a data da sua morte, o nome de seu quarto filho – Qianlong, como sucessor ao trono. Qianlong [6º imperador] reinou de 1735 à 1795, quando abdicou do trono ao completar 70 anos com o objetivo de não ultrapassar o reinado de seu avô – Kangxi. Apesar da renúncia, informalmente continuou exercendo o poder até a sua morte em 1799. Durante seu império a China alcançou enorme esplendor e glória. Devido ao aumento populacional e a fim de garantir as necessidades dos centros urbanos, incrementou a agricultura e incentivou o comércio regional e nacional. Em seu governo, a arquitetura, as pinturas, as porcelanas e a literatura floresceram. Determinou o inventário e a catalogação da biblioteca imperial: a fim de evitar críticas ao imperador e conter pensamentos considerados subversivos, uma inquisição de livros e autores foi instalada, inúmeros livros foram destruídos e os autores perseguidos, muitos até executados. Foi símbolo do monarca confucionista, ou seja, era culto, benévolo, filial, bom estrategista e marcial: participou pessoalmente de diversas batalhas e sobre elas, escreveu vários poemas, memoriais e levantou diversos monumentos. [Beja, 2019, p. 213-214] Durante seu governo, derrotou os Mongóis, incorporou o Turkestán [atual Xingjiang] à China [1759], consolidou o domínio sobre o Tibet e enviou expedições ao Nepal. Derrotou as insurreições na Birmânia e no Vietnã e instituiu o sistema tributário Chinês nestas regiões. Nos últimos anos de sua vida, Qianlong manifestou o seu amor por luxos e extravagâncias, abrindo espaço para bajuladores que o rodeavam. A partir de 1775, foi influenciado por Heshen que, segundo Beja (2019, p. 214), aproveitando-se da sua beleza e da simpatia do imperador de 64 anos, enriqueceu-se escandalosamente por meio da corrupção e do abuso de poder. Durante a segunda metade do século XVIII, devido a corrupção exagerada, insurgiram contra o império inúmeras rebeliões que pressionaram o imperador econômica e militarmente, dando início à decadência do império Chinês e a desintegração do sistema imperial. Novos Estudos em Extremo Oriente 150 A sociedade e a vida intelectual Chinesa durante os séculos XVII e XVIII Entre os séculos XVII e XVIII, a China contava com uma população de 300 milhões de pessoas concentradas, em sua maioria, nas planícies do norte, do vale do Yangzi, da costa sul e na província de Sichuan. A população era rural e viviam em aldeias ou em pequenas cidades, e pouco mais de 10.000 habitantes viviam nas cidades. As cidades eram rodeadas por muros, guardadas militarmente e eram as sedes dos edifícios públicos e privados, onde eram realizados os exames públicos. Nos grandes centros haviam mercados, lojas e bancos. Já nas aldeias as casas eram rodeadas de campos e nelas controlavam-se as águas e praticavam-se atos religiosos. Havia uma certa unidade entre as aldeias quanto a língua, a religião e as práticas sociais. Elas não eram autossuficientes e necessitavam do apoio do governo e militar. Contra os abusos dos funcionários do império, os comerciantes recorriam ao suborno e os camponeses eram a classe mais explorada e pagavam impostos altíssimos ao império. Haviam muitos trabalhadores agrícolas sem terra. As tradições sociais e a ortodoxia moral eram notórias. A vestimenta era determinada de acordo com o padrão social e eram usadas de acordo com a hierarquia dentro de uma mesma família: os mais velhos vestiam trajes de pele enquanto os mais novos, tecidos menos valiosos. Nas relações domésticas, haviam servos e escravos. As mulheres poderiam ser objeto de compra para servirem como concubinas, escravas ou servas e durante a dinastia Qing, sofreram inúmeras formas de opressão e humilhação: o número de infanticídios feminino aumentaram [devido a pobreza e pressão social], o concubinato floresceu, o suicídio das viúvas era considerado ‘prova de castidade e virtude’ [a família das viúvas suicidas eram honradas pelo império] e os pés atados ou pés de lótus foram muito populares durante a dinastia, garantiam status social [meninas entre quatro e nove anos tinham seus pés amarrados aos sapatos a fim de restringir o crescimento e com o pés pequenos – até no máximo 10 cm – elas garantiriam um bom marido no futuro]. A classe dirigente impunha um ideal de mulher como sendo abnegada, submissa e fiel. Mulheres da realeza usavam trajes imperiais e usavam maquiagem branca sobre o rosto e adornos na cabeça, cujo tamanho identificava a hierarquia entre elas. Apesar da opressão, que era vista com bons olhos pelos eruditos confucionistas da época e reflexo da sociedade conservadora da China Imperial, vários escritores expressavam o seu apoio as mulheres através de personagens femininos retratados nas novelas com inteligência e valor. Em algumas regiões as mulheres puderam estudar e escrever poesias e ensaios. O pensamento chinês, marcado por uma época de consolidação política, social, enorme surto econômico e ausência de inconformismo, tornou-se mais sereno e, ao longo do século XVIII, viu-se triunfar um espírito científico e filosófico alicerçado nas tradições escritas. Foi um período de livre pensamento e de críticas às instituições e aos fundamentos intelectuais do Império. Foram analisados os vícios do absolutismo, o autoridade ilimitada dos eunucos, a decadência dos Estados e os métodos de ensino tradicionais [tradicionalista Chinês] [Gernet, 1974, p. 41]. Obras como o Palácio da longa vida Novos Estudos em Extremo Oriente 151 [Changshengdin] de Hong-Sheg [1645 – 1704], que tem como tema os amores da concubina Yang e do imperador Xuanzong ecoavam na sociedade, bem como o leque com flores de pessegueiros [Taohuashan], de Kong Shangren [1648-1718]. Li Yu [1611-1680?] consagrou-se no teatro e no romance. Sua obra célebre é o romance erótico A almofada de carne [Rouputuan]. [Gernet, 1974, p. 42]. A pintura Qing também mereceu lugar de destaque: a vitalidade e a originalidade eram notáveis. Dos notáveis pintores, destaram-se: Bada Shanren e Shitão. Foi um período de esplendor, de muitas conquistas, notório desenvolvimento econômico, territorial e de pacificação social. Apesar de todo o esplendor, no século XIX e devido as guerras do ópio, dependência econômica da China ao ocidente e o imperialismo na China, o mito da superioridade chinesa desmoronou e os movimentos republicanos acentuaram-se em todo o império. Em 1911, o império Qing entrou em decadência total e liderado por Sun Yat-sen, a República foi instituída na China pondo fim as dinastias imperiais chinesas. Referências Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). BEJA, Flora Botton (coord). História Mínima de China. El Colegio de México: Centro de estúdios de Ásia y África. 2019. BUENO, André. (org.). Mulheres na China Imperial. União da Vitória. 2008. CEINOS, Pedro. História breve de China. Espanha: Silex. 2003. GERNET, Jacques. O mundo Chinês: uma civilização e uma história. Lisboa: Editora. 1974. Cosmos. Novos Estudos em Extremo Oriente 152 ECOS DE UMA INDEPENDÊNCIA NÃO CONQUISTADA: TEMÁTICAS NA LITERATURA COREANA DO SÉCULO XX por Suéllen Gentil e Alexsandro Pizziolo Introdução A virada do século XIX para o século XX configurou uma série de mudanças até então sem precedentes na península coreana. O fim da dinastia Chosŏn [1392 - 1897] e a consequente anexação do território pelo Japão, primeiro como uma espécie de protetorado, e depois como parte do território do Império japonês, trouxe uma sérieDRAM,[...], devido a sua capacidade de negociar acordos de joint venture com as multinacionais estrangeiras e pela compra de licenças de tecnologia de empresas estrangeiras, superando os enormes custos de entrada no setor de capital intensivo. Dessa forma, além de permitir a entrada de IDE passíveis de apropriação tecnológica, o governo aumentara os incentivos Novos Estudos em Extremo Oriente 16 fiscais e financeiros às atividades de P&D privadas, afastando-se gradualmente da atividade. Devido à expansão das atividades independentes de P&D em semicondutores as instalações de pesquisa de semicondutores da KIET foram vendidas para a LG em 1985. Nesse momento, novamente a parceria entre o governo e os chaebols garantiria que o conglomerado se concentrasse na dinâmica inovativa industrial, permitindo o governo diminuir os gastos públicos em P&D e consequentemente a sua importância no sistema nacional de inovação”. (Idem, p. 95). Essa capacidade de negociar acordos de joint venture com empresas estrangeiras que dominavam a tecnologia aliado ao apoio estatal, permitiu o início do desenvolvimento da indústria de semicondutores coreana. A relativa diminuição da participação do Estado ao longo da década de 1980, em consequência do amadurecimento tecnológico das empresas locais, aumentou a concorrência entre as firmas coreanas tanto no mercado interno como no externo, amplificando o grau de comprometimento dessas empresas com P&D. A recompensa por esses investimentos seria aumentar a participação nos mercados internos e externos elevando o faturamento e o lucro ou, mesmo, permitindo a continuidade das atividades dessas empresas nesse ramo industrial em particular. Desta forma a Coreia do Sul passou por uma profunda transformação de sua base produtiva nas últimas décadas, passando de um país pobre e agrícola para se tornar uma nação industrial com uma ampla base tecnológica, como demonstra a mudança de perfil das exportações do país. Em 1962 foram exportados não mais que 49,2 milhões de dólares sendo que os bens primários representaram 37,8 milhões de dólares ou 77% do total, para efeito de comparação, nesse mesmo ano o Brasil exportou 1,29 bilhão de dólares com um perfil das exportações também fortemente baseada em bens primários. Ou seja, além de ter exportado pouco a Coreia exportou mercadorias de baixa complexidade e de baixo valor agregado, o que dificultava a dinamização da economia e a melhora da qualidade de vida da maior parte da população. Em 2019 as exportações chegaram a 540 bilhões de dólares (o Brasil, no mesmo ano, exportou 217 bilhões) e tinham mudado profundamente de perfil, sendo que apenas as exportações de circuitos integrados foram de 87,5 bilhões. Eletrônica (engloba circuitos integrados) foram de 159 bilhões. As exportações totais de bens de médio e alto valor agregado (eletrônica, maquinaria e veículos) foram de 330 bilhões, confirmando uma notável mudança de posição na divisão internacional do trabalho no decurso de 60 anos. Conclusão Desde que surgiu como estado independente em 1948 a Coreia do Sul buscou a rota do desenvolvimento econômico e social. Nesses 70 anos deixou de ser uma economia agrícola para se tornar um dos mais dinâmicos “tigres asiáticos”. Para tanto realizou reformas estruturais, como a agrária, implementou um sistema educacional de elevado nível de qualidade, desenvolveu políticas industriais eficientes e alocou grandes somas e P&D, tanto pelo setor público como pelo privado, de fato a interação entre a esfera Novos Estudos em Extremo Oriente 17 estatal e empresas privadas foi um dos motores que alavancaram o desenvolvimento coreano. Desta forma, esse pequeno país asiático (do tamanho do estado de Pernambuco e com uma população cinco vezes maior, cerca de 50 milhões de habitantes) se tornou uma das poucas nações de industrialização retardatária que conseguiu desenvolver uma indústria de alta tecnologia competindo internacionalmente com países com bem mais tradição em áreas como a microeletrônica, como os EUA e Japão, sendo, inclusive, líder em áreas estratégicas como na produção de memória DRAM. Referências Alexandre Black de Albuquerque é Mestre em história pela Universidade Federal de Pernambuco. EVANS, Peter. Autonomia e Parceria: Estados e transformação industrial. UFRJ, 1º edição, 2004. GUIMARÃES, Alexandre Queiroz. Estado e economia na Coreia do Sul: do Estado desenvolvimentista à crise asiática e à recuperação posterior. In: Revista de Economia Política. São Paulo, v. 30, no. 1, mar 2010. p. 45-62. Disponível em acesso em 16/01/2013. IBRAHIMI, Hermano Caixeta. Rev. A Política Industrial na Coreia Do Sul e no Brasil Durante o Paradigma Tecnológico da Microeletrônica. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 27, p. 83-114. jul./dez. 2019. MASSIERO, Gilmar. A Economia Coreana: características estruturais. 2002. NARULA, Rajneesh. Technology, International Business and Porter's "Diamond": Synthesizing a Dynamic Competitive Development Model. MIR: Management International Review Vol. 33, Extensions of the Porter Diamond Framework, 1993, p. 85-107. Published By: Springer. https://www.jstor.org/stable/i40008198 Novos Estudos em Extremo Oriente 18 IGUALDADE DE GÊNERO E DEMOCRACIA: A COREIA DO SUL E O MOVIMENTO FEMININO por Amanda de Morais Silva Introdução De acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Organização das Nações Unidas, que compõem um plano global para um futuro sustentável, em termos sociais, econômicos e ambientais, uma das metas a serem atingidas é a igualdade de gênero, reafirmando compromissos como o projeto a eliminação da discriminação e da violência de gênero (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2022). Essas metas são postas como formas de eliminação dos elementos que sustentam a exacerbação das vulnerabilidades de mulheres e garotas, pondo-as em situações de risco desproporcionais. Em 2021 a reunião da Comissão das Nações Unidas sobre o Status das Mulheres enfatizou que o status das mulheres é o status da democracia, tendo em vista que o empoderamento de mulheres e sua participação ativa na tomada de decisões na esfera pública, bem como a participação na esfera privada, fortalecem a democracia (MARKHAM; FOSTER, 2021). Afirmações como essa são sustentadas por pesquisas e resultados de experiências de campo, tais como os relatados pela Brookings Institution, em seu policy brief “Democracia, igualdade de gênero e segurança” (PICCONE, 2017), que mostra que instituições democráticas como Ministérios, corpos de tomada de decisão, partidos políticos e organizações da sociedade civil são mais fortes quando são estabelecidos maiores níveis de igualdade de gênero. Como resultado disso, gera-se maior participação política feminina, que resulta em ganhos tangíveis para a democracia, incluindo-se maior responsividade para as necessidades dos cidadãos e um aumento na cooperação entre linhas étnicas e partidárias. Para além disso, trabalhos publicados pelo Grupo do Banco Mundial indicam ainda que maiores números de líderes políticas femininas correspondem também a padrões mais altos de vida, melhores resultados em índices de acesso à educação, à infraestrutura e à saúde (MARKHAM, 2013). Assim, não obstante a manutenção de uma democracia demande, imprescindivelmente, a defesa e a promoção da igualdade de gênero, junto ao papel ativo de mulheres na esfera pública e no centro de tomada de decisões políticas, é possível resgatar contextos democráticos que foram erguidos com indiscutível protagonismo feminino, mas que encontram dificuldades na efetivação dessa agenda. Novos Estudos em Extremo Oriente 19 É nesse contexto que se busca situar a Coreia do Sul. A nação, que viveu duros anos sob o controle do Império Japonês, entre 1910 e 1945, sob influência do militarismo americano,de transformações a uma terra reconhecida por uma sociedade que valorizava a estabilidade expressa pelos valores neoconfucionistas e uma política que minimizava o contato com outras nações [Macedo, 2018]. Em um período de poucos anos a Coreia passou de um reino estável a um território cobiçado por diferentes nações e, por fim, a uma colônia do Japão. Foram mais de 40 anos de ocupação japonesa, nunca estáveis, permeados por uma série de revoltas populares, bem como diferentes níveis de recrudescimento da violência e das formas de opressão. A sociedade coreana, ao longo desses anos, precisou se ajustar às novas realidades impostas pelos novos agentes, vetores de uma nova realidade. Os coreanos viriam a ter contato com novos valores, que suscitariam conflitos com a filosofia vigente na antiga Chosŏn, e acima de tudo, seriam forçados a lidar com a sua condição de colonizados, subjugados por uma nação que a princípio tentou valer-se das supostas afinidades partilhada entre “vizinhos”, mas que não tardou em impor sua autoimagem de superioridade, promovendo uma série de restrições ao cidadão coreano, inclusive ao direito de usar sua própria língua. O período colonial foi marcado por uma série de iniciativas de cunho independentistas, das quais destaca-se o Samiljeol, também conhecido como o Movimento de Independência de Primeiro de Março, acontecido em 1919. Um movimento que, embora não tenha resultado na independência da colônia, configurou um esforço que extrapolou as fronteiras da península, lançando uma conscientização a respeito do que se passava no território e inspirou outras iniciativas ao longo dos anos [Podoler, 2005, p. 138]. A forte repressão japonesa ao movimento ditaria a tônica da segunda metade da ocupação no território coreano [Devine, 1999]. Novos Estudos em Extremo Oriente 153 Com o fim da colonização japonesa, após a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial, a Coreia teve a sua Libertação e mergulhou numa verdadeira crise interna, novamente provocada por anseios que advinham de nações externas. A península coreana entre o fim da década de 1940 e o início da década de 1950 foi palco de uma luta que tinha como discurso a defesa ou o combate aos valores comunistas e socialistas representados pelas potências URSS e EUA, mas que no fim das contas resultou na cisão de seu território e na morte de milhares de seus cidadãos [Macedo, 2018]. Em que pese a noção de que a literatura é uma expressão estética que se sustenta apesar da contextualização histórica, o presente texto pretende elucidar algumas correntes e temáticas presentes na produção literária coreana no século XX tendo como pano de fundo o contexto histórico marcado pela colonização japonesa e a Guerra da Coreia. Entre a literatura produzida durante e após esses marcos é possível perceber tendências discursivas, tópicas e estéticas cuja compreensão só tem a ser enriquecida quando analisada em consonância com uma concepção historicamente informada: “A ascensão da literatura coreana moderna, então, deve ser entendida dentro do contexto histórico de um movimento incipiente em direção à modernização da sociedade, da queda da ordem sociopolítica tradicional e da experiência amarga da colonização japonesa. Ao fim do século XIX, condições sociais e culturais já estavam em curso para a expansão do letramento: livros e jornais utilizando a escrita coreana, ao invés do chinês clássico (que havia sido o padrão da escrita no período Chosŏn), se espalharam de tal forma que o coreano escrito passou a ser mais acessível ao leitor comum. Mais ainda, com o influxo de cultura moderna ocidental e as instituições da sociedade burguesa vieram novas formas de interpretar o mundo e o lugar do indivíduo nele. A ascensão da literatura coreana moderna deve-se muito ao interesse recente na subjetividade do indivíduo e no valor do comum.” [Taizé, 2005, p. 6, tradução nossa] Ausência e fragmentação na poesia coreana [1920-1937] Entre as diversas expressões literárias que florescem na Coreia no século XX, a poesia é indiscutivelmente um destaque pela sua capacidade de mobilizar as mais diversas temáticas a partir da sensibilidade de artistas em perfeita harmonia com os sentimentos que ebuliam na época. Muitas chaves de leituras podem ser referenciadas ao se tratar da poesia dessa época. Neste trabalho optamos por singularizar alguns poetas de expressão nacional que deixaram sua marca na cena artística coreana e que nos ajudam a compreender de que forma a angústia advinda da colonização japonesa estavam expressas. Durante a década de 1920, um dos poetas de maior destaque é o jovem Kim Sowŏl [1902-1934], que reflete na sua poesia o sentimento face ao aumento do aparato opressor do governo japonês. A onipresença do Estado Japonês em todos os aspectos da vida do povo coreano suscitam um generalizado Novos Estudos em Extremo Oriente 154 sentimento de perda na poesia da época, expressa através das metáforas da perda do lar ou da amada, como símbolo da perda da identidade nacional. Kim Sowol apela em sua poesia para o inconsciente coletivo da época a partir de imagens que remetem a um sentimento de perda, embebidas numa atmosfera de anseio constante por aquilo que um dia lhe pertenceu e agora só resta a saudade [Taizé, 2005, p. 12]. O poema Rostos esquecidos nos convida a contemplar o tema da ausência, tão presente na pena do autor: “Vem o sono ao fim do pensamento // Ao fim da saudade o esquecimento // Por isso, não digas mais nada, quando este chegar // Não conheço mágoa que não tenha // as marcas de um rosto esquecido” [Im, 1993, p. 32]. A ausência aqui explicitamente evocada a partir da figura da saudade de um rosto esquecido, distante no passado, pode ser relacionada ao esquecimento da própria liberdade do povo coreano. O título faz referência a “rostos”, no plural, e o eu-lírico diz que ao fim da saudade há o esquecimento, o que nos remete a uma atividade recorrente, rostos, que representam um passado longínquo, são constantemente esquecidos, assim como valores e sentimentos caros aos cidadão coreanos que são apagados com o passar do tempo, mesmo que deixem a saudade expressa no poema. Outros poemas de autoria de Kim Sowŏl, como Azaléias, Sonhos e Inesquecível, expressam a temática da ausência provocadas pela iminente separação do eu-lírico e o objeto de sua afeição, um descolamento que está sempre expresso em seus versos e que culminam num constante estado de perda, de saudade, de esquecimento. Essa relação entre a voz do poeta e a ausência abre possibilidades para inúmeras interpretações, mas o que tem se consolidado é a leitura a partir de um dos sentimentos da época, o de inação perante o opressor, que se expressa a partir de versos que remetem a um anseio por aquilo que foi perdido. Outro desdobramento da segunda metade do período colonial é a experimentação na linguagem aliada a um desejo de estabelecer uma voz coreana a partir da língua e da escrita nativa. Uma das principais práticas de opressão adotadas pelo governo japonês foi a da censura ao uso da língua e da escrita coreana. O ensino do coreano foi proibido nas escolas e aquele que fosse pego falando em coreano em público também era severamente punido. A escrita coreana, o alfabeto Hangul, não era difundida no território que adotava o uso dos caracteres chineses, mas a partir das primeiras décadas do século XX o que se vê é uma intensificação do ensino e do uso desse alfabeto, que acaba adquirindo um símbolo de resistência perante as imposições japonesas. O uso do alfabeto coreano e os sentimentos promovidos por essa existência indefinida entre colonizado, entre coreano e “japonês”, manifestam-se na literatura através de uma fragmentação do sujeito, que atinge o seu ápice na poesia de Yi Sang [1910-1937]. O poeta de vanguarda adotava um estilo inusitado, utilizando de elementos visuais não-convencionais para a época, como o uso de números,entre 1945 e 1948, e da Guerra da Coreia, de 1950 a 1953, passou também, no período de 1963 a 1987, pelo o autoritarismo de um governo militar. Contudo, foi em sua época ditatorial que, livre do controle e administração de outras nações, o seu período de soerguimento econômico - ou “milagre econômico” - floresceu, conjuntamente com a efervescência dos movimentos sociais em prol da instituição de uma democracia. Não por acaso, o movimento de mulheres exerceu um importante protagonismo feminino para a constituição de um regime democrático no país, especialmente tendo em vista as fortes marcas que governos militaristas e patriarcais imprimiram na construção de um ideal democrático. O movimento feminino sul-coreano se constitui, nessa medida, como importante chave para se pensar os percalços enfrentados no período de redemocratização do país, bem como para se compreender um dos pilares nos quais se deve erguer uma nação: o da igualdade de gênero. A defesa da igualdade de gênero na Coreia do Sul, tal como em diversos outros países, enfrenta percalços para o apoio de demandas levantadas por mulheres e grupos minoritários frente às desigualdades estruturais vividas (KIM; LEE; SHIN, 2016). Apesar disso, atualmente, mesmo sob fortes ataques de um crescente conservadorismo e anti-feminismo (BICKER, 2022), é verdade que o movimento feminino também se expande e se faz ouvir, na mesma ou em maior intensidade. O milagre econômico e o movimento feminino sul-coreano O movimento feminino coreano emerge em meados do fim do século XIX como forma de resistência à política e à cultura confucionistas que estabeleciam moldes patriarcais, como guias para a educação de mulheres, cujas expectativas de um comportamento feminino obedeciam noções da “ideologia da mulher confucionista”, isto é, “boa esposa, mãe sábia” ou hyeonmo-yangche o [현모양처] (KOH, 2008, p. 355; HUR, 2011, p. 181). Seguindo-se ao período de colonialismo japonês e ditaduras posteriores, o movimento de mulheres continuou a lutar em prol de direitos sociais e de liberdade política. Apesar disso, inseridos em contextos de governos e regimes autoritários, o movimento feminino viu-se diluído em mobilizações políticas mais “amplas” pró-democratização, o que fez com que a pesquisa relacionada ao próprio movimento feminino sul-coreano fosse majoritariamente confinada a contextos de regimes liberais democráticos e posta em segundo plano em situações de autoritarismo governante - haja vista a pauta “maior” da democratização (LEE; CHIN, 2007, p. 1205). Apesar dessa precedência de questões acerca da liberdade política sobre as preocupações políticas relacionadas a demandas de mulheres, é possível defender um protagonismo feminino no fomento do período de transição democrática. Em especial, quando se faz um balanço acerca do sucesso ou fracasso do movimento feminino, dentro da vivência de um período autoritário ditatorial no qual a Coreia do Sul estava imersa, analisar o impacto e os resultados de sua mobilização para a sociedade coreana e especificamente para as mulheres implica também analisar reformas em Novos Estudos em Extremo Oriente 20 termos legislativos e institucionais voltadas à proteção das mulheres como um todo. Com o golpe militar liderado pelo General Park Chung-hee em 1961, e com a instituição da lei marcial - isto é, a instituição de leis militares na administração ordinária da justiça -, os governos autoritários que se seguiram usufruíram de seus poderes para efetivar um rápido desenvolvimento econômico através de uma série de iniciativas diretas, promovendo, conjuntamente, princípios confucionistas como o de lealdade ao governante e de piedade filial (JUNG, 2014, p. 80). A divisão nacional foi frequentemente utilizada no regime militar de Chung-hee como justificativa para a adoção de uma política anti-comunista de Estado, reforçando as medidas de segurança nacional baseadas na supressão de liberdade de expressão e de criticismo às políticas governamentais adotadas. Mulheres foram, então, mobilizadas para propagar e reforçar a mensagem de segurança que o governo pretendia transmitir na medida em que foram convocadas para integrar o “Movimento de Nova Comunidade” - ou Saemaeul Undong [새마을 운동] -, plano de governo de modernização da economia da área rural do país, buscando a diminuição da disparidade dos padrões de vida entre os centros rurais e os centros urbanos, estes últimos os quais passavam por uma rápida modernização e industrialização (JUNG, 2014, p. 81). Mulheres foram, então, o objeto do impulso estatal modernização: mulheres da zona rural, fazendeiras e donas de casa no movimento tiveram protagonismo na promoção e condução de campanhas promovidas pelo Estado. Políticas como o programa de planejamento familiar, que almejava a redução de nascimentos indesejados através de um plano de serviços de saúde básica materna e infantil, ofertando concessões monetárias a mulheres hipossuficientes que aceitassem esterilização “voluntária”, visavam à diminuição da densidade populacional e à melhoria da renda per capita (DAVIS, 1994, p. 228; JUNG, 2014, p. 93). Como um sintoma do conservadorismo do período, até o surgimento de organizações progressistas de mulheres nos anos 1980, a maior parte do movimento feminino viu-se liderada por organizações conservadoras. Instituições como a Associação Nacional de Mães Coreanas, ou a Associação Nacional Coreana de Mulheres Universitárias, das quais grande parcela estava filiada à organização guarda-chuva de grupos femininos sancionada pelo governo, o Conselho Nacional Coreano de Organizações de Mulheres, não estavam particularmente preocupados com questões relacionadas aos direitos das mulheres e igualdade. Apesar disso, movimentos femininos orgânicos, tal como o Movimento de Trabalhadoras nos anos 1970, tendo em vista que a busca por um rápido desenvolvimento econômico levou à mobilização de mulheres como força de trabalho barata em indústrias de trabalho intensivo, mulheres essas sem as quais o milagre econômico coreano não teria sido possível (PALLEY, 1994, p. 281 apud JUNG, 2014, p. 93). A demanda pela garantia de um padrão mínimo legal de condições de trabalho foi conduzida por ativistas trabalhadoras de fábricas de tecidos, sapatos, perucas, roupas e eletrônicos, e embora as questões levantadas pelo movimento de trabalhadoras não fossem restritas às mulheres, foi ele que teve papel decisivo Novos Estudos em Extremo Oriente 21 na mudança de consciência de mulheres universitárias e jovens mulheres em geral (JUNG, 2014, p. 94). Ao longo das décadas de 1960 e 1970, o avanço econômico e social sem precedentes em conjunto à industrialização e à urbanização permitiu com que oportunidades educacionais para mulheres fossem expandidas e abriu margem pra uma aproximação das relações entre o movimento estudantil e os movimentos de trabalhadores. Números significativos de estudantes deixaram as universidades, assumindo empregos em fábricas para educação e mobilização de trabalhadores em prol da criação de sindicatos, apoiando as greves trabalhistas organizadas por trabalhadoras. Em troca, as trabalhadoras contribuíram para o sucesso do movimento de democratização e do movimento feminino nos anos 1980 e 1990, período no qual a maior parte das organizações progressivas femininas foi estabelecida (JUNG, 2014, p. 82). Não obstante o forte autoritarismo do regime militar de Chun Doo-hwan entre os anos de 1980 e 1986, a política de apaziguamento adotada em dezembro de 1983 reduziu a opressão do governo e abriu margem para o estabelecimento público de organizações progressistas do movimento de mulheres, as quais participaram em movimentos contra o regime autoritário militar, assumindo uma posição anti-Estado. Essa postura fez com que o plano de ação do movimento não vislumbrasse políticas institucionais e políticas públicas como ferramentas para solução dos problemas das mulheres. Similarmenteaos posicionamentos do movimento mais amplo pró-democracia, o movimento feminino assumia o Estado como um corpo burocrático que ofuscava a sociedade civil pelo exercício da força contra a democracia e os direitos civis (JUNG, 2014, p. 84). Em razão disso as pautas do movimento feminino não chegavam a se concentrar tanto em problemas advindos de questões de gênero, mas sim no alcance da democracia e na derrubada do aparato estatal que oprimia a classe trabalhadora em prol da manutenção do capitalismo. Durante o período, o movimento feminino estava focado na crítica às políticas governamentais ou forças de estado, como a polícia, mantendo uma distância institucional. A institucionalização do movimento feminino? O Estado sul-coreano e as políticas de gênero Reformas políticas e institucionais que foram a certo ponto o objetivo final de uma organização de mulheres tornaram-se, então, variáveis que contribuíram com o processo de reforma social desse período de transição democrática na Coreia do Sul. Em meio a tais demandas, para além da expansão de um local político de atuação e representatividade, o movimento feminino adotou táticas não-convencionais e disruptivas, tais como ocupações, e ativamente promoveu campanhas públicas e protestos para trazer atenção às demandas femininas e impulsionar uma maior aceitação pública de suas pautas. À princípio, o movimento progressivo de mulheres não recebia, portanto, apoio tampouco assistência financeira do governo, haja vista a hostilidade desse ator político para com movimentos sociais de mulheres e estudantes. Apesar disso, as organizações eram sustentadas através da filiação de seus membros (JUNG, 2014, p. 84). Novos Estudos em Extremo Oriente 22 Havia, portanto, uma clara distinção dessas organizações em relação àquelas apoiadas pelo governo, isto é, aquelas que eram dominadas por mulheres de classe média ou alta, que estavam alienadas da grande população de mulheres trabalhadoras e sem preocupações com os problemas ou interesses de mulheres mais pobres (NAM, 2000, p. 96). Em contraste, organizações progressivas, majoritariamente afiliadas à Korean Women’s Association United, ou Associação de Mulheres Coreanas Unidas - fundada em 1987 como uma organização guarda-chuva para vinte e três organizações de movimentos progressistas femininos - cresciam em força e tamanho na década de 1980. Com a grande industrialização, mulheres passaram a integrar gradativamente o mercado de trabalho e experienciar diretamente, e coletivamente, a discriminação em espaços segregados por sexo, resultando no desenvolvimento de uma consciência de gênero a partir da experiência de problemas comuns às mulheres. Os sofrimentos e lutas de mulheres jovens trabalhadoras de fábrica dos anos 1970 moldaram significativamente o movimento feminista da década posterior. Seus protestos geraram indignação e preocupação humanitária em meio às mulheres progressistas de classe média, membros de igreja radicais e outras ativistas femininas. O ativismo de classe trabalhadora feminina, então, contribuiu substancialmente para o desenvolvimento da consciência de gênero de mulheres trabalhadoras, mas também de mulheres de classe média (NAM, 2000, P. 97). Grupos progressistas de mulheres, portanto, preocupados com os direitos de mulheres trabalhadoras e das classes mais baixas recusaram-se a cooperar com o Estado que controlava e limitava suas atividades, tendo em vista que, sob o regime militar de Park Chung-hee (1963-1979) e de Chun Doo-hwan (1980-1988) posições anti-governo eram frequentemente interpretadas como pró-comunistas e pró-Coreia do Norte. Nesse contexto, as políticas voltadas às mulheres nos anos 1980 eram determinadas exclusivamente pelo Estado, seja em razão de sua natureza autoritária, seja em razão da relutância do movimento feminino em estabelecer um engajamento com instituições governamentais (KIM, 2002, p. 29). Nesse sentido, a gestão de assuntos relacionados às mulheres, à época, era liderada por apenas três grandes instituições nacional: O Instituto de Desenvolvimento de Mulheres Coreanas, o Comitê Nacional em Políticas de Mulheres e o Ministério de Assuntos Políticos II, organização administrativa essas que demonstraram ser resultado de pressão doméstica e internacional, especialmente no que concerne às questões levantadas na Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas As Formas de Discriminação Contra Mulheres de 1979 (JUNG, 2014, p. 96) A coesão dos grupos femininos cresceu consideravelmente, culminando na solidariedade entre sindicatos por meio de greves lideradas por mulheres no Complexo Industrial Guro - o coração das indústrias leves de mão-de-obra intensiva da Coreia do Sul - em 1985 (SHIM, 2021; NAM, 2000, p. 97). Embora o governo não tenha convidado mulheres ativistas na participação do processo de construção de políticas públicas de seus órgãos administrativos - ao tempo focados na proteção do bem-estar de mulheres e crianças e não exatamente Novos Estudos em Extremo Oriente 23 nos direitos das mulheres, tampouco na igualdade de gênero -, civis com prestígio social foram convidadas para participar de órgãos como o Comitê Nacional (JUNG, 2014, p. 84) A recuada do governo militar, já ao fim da década de 1980, e a introdução de eleições presidenciais diretas impulsionou a participação política feminina durante a eleição do governo civil liderado por Kim Young-sam em 1993, possibilitando um cenário político de alargamento de movimentos femininos com grande influência política. Essa abertura de terreno para a atuação do movimento feminino, já sob um novo governo democrático, junto à pressão para promoção de políticas de transversalização de gênero - ou gender mainstreaming - também como objetivo fixado na Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações Unidas de 1995, acabou por impactar a visão que o movimento feminista tinha sobre a possibilidade de aproximações com o governo coreano. Antes temidas, institucionalização do movimento feminino ganhou atenção dos grupos e organizações de mulheres, na medida em que, ao mesmo tempo que a institucionalização de suas pautas poderia representar um tolhimento de suas ações, criando certa hierarquização do movimento e desvio ideológico, poderia também ser uma medida de buscar uma resposta do Estado para a diminuição do esgarçamento da desigualdade e da violência de gênero contra mulheres (JUNG, 2014, p. 85). Nesse sentido, feministas reuniram seus esforços na colocação de pautas femininas na agenda de políticas públicas. O engajamento do movimento feminino sul-coreano com o Estado, combinado aos esforços nacionais e internacionais em torno da igualdade de gênero possibilitaram progresso significativo na diminuição da igualdade de gênero, em especial ao refletirem em mudanças legislativas e estruturais da própria Administração pública sul-coreana, tal como a edição da Lei sobre a Punição dos Crimes de Agressão Sexual e Proteção das Vítimas em 1994 e a Lei do Emprego Igualitário em 1995. Em 1997, com a vitória presidencial do ativista pró-democracia Kim Dae-jung levou a um maior progresso na área de políticas públicas voltadas às mulheres, sendo a criação do Ministério da Igualdade de Gênero - hoje, Ministério da Igualdade de Gênero e da Família - em 2001 um de seus maiores feitos. Democratização e igualdade de gênero: as plataformas do movimento feminino As dificuldades no avanço da igualdade de gênero ao longo do tempo impeliram a incorporação de constelações novas entre sociedade civil e atores do Estado, bem como a interação com uma matriz institucional em constante mudança durante o aprofundamento do curso democrático a fim de manejar aberturas e coalizões que impliquem em mudanças concretas na administração das políticas de gênero no vislumbre da sobrevivência e da resistência do movimento feminino durante todos esses anos (JONES, 2006, p. 3). Avanços legislativos como aabolição do sistema hoju em 2005, a instituição de uma política de cotas em eleições locais e nacionais de parlamentares, em 1995 e 2000, respectivamente, bem como a indicação de mulheres para ocupação de cargos ministeriais, demonstraram um aumento na representação Novos Estudos em Extremo Oriente 24 feminina sustentada pelo suporte financeiro estatal de pautas feministas e de movimentos femininos. Considerando, então, que o movimento feminino sul-coreano enquanto mobilização sócio-política e ideológica que, em termos políticos, sociais e econômicos, visa a igualdade entre homens e mulheres, ele contribui para o impulsionamento da participação de mulheres nas mais diversas esferas, públicas e privada, de forma que o legado de suas ações e intervenções na estrutura política e social sul-coreana ressoa ainda fortemente nos dias atuais. Embora um crescente conservadorismo em torno de pautas afetas à igualdade de gênero tenha ganhado novamente espaço nas plataformas políticas mais jovens (PARK, 2021), não perdeu o movimento feminino sua força. Ainda que diverso, o movimento feminino ressoa por diversos canais, o `cyberfeminismo` e o `legal feminism` sendo algumas de suas formas. Certificando sua influência política ainda hoje, segue em forte discussão, por exemplo, o projeto de lei anti-discriminação Assembleia Nacional da Coreia do Sul (HUMAN RIGHTS WATCH, 2021) que intenta consolidar as intenções do movimento em reformas institucionais que ecoarão por toda a sociedade coreana. Nesse sentido, ainda que plural, e talvez justamente por isso, o movimento feminino, que ajudou a construir os pilares da democracia sul-coreana hoje vigente, e procurar abrir caminhos para que não mais a igualdade de gênero seja tratada como agenda secundária, mas sim como questão que indiscutivelmente afeta todos e todas. Referências biográficas Amanda de Morais Silva é graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE e pesquisadora associada da Coordenadoria de Estudos da Ásia - CEASIA na Curadoria de Coreia do Sul e Curadoria de Assuntos do Japão Referências bibliográficas BICKER, Laura. Why misogyny is at the heart of South Korea's presidential elections. BBC, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-60643446 DAVIS, Lisa Kim. “Korean Women’s Groups Organize” In: Gelb, Joyce, and Palley, Marian Lief (eds.), Women of Japan and Korea: Continuity and Change, Philadelphia, PA: Temple University, 1994, p. 223–239. HUMAN RIGHTS WATCH. National Assembly of South Korea should act swiftly to enact anti-discrimination legislation, 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2021/11/11/national-assembly-south-korea-should-act-swiftly-enact-anti-discrimination. HUR, Song-Woo. Mapping South Korean Women’s Movements During and After Democratization: Shifting Identities, 2011. 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A devoção espiritual e a dedicação a memória dos falecidos representam uma ação de fé, ligada a crença de que existiria vida após a morte. No entanto, essa mesma vida após a morte possui um aspecto dicotômico em relação à veneração dos ancestrais, e que queremos discutir agora. Ancestralidade na China O culto aos ancestrais é um dos elementos centrais da religiosidade chinesa, tendo origem na fase neolítica na história da China. Não iremos nos aprofundar agora em uma discussão sobre as múltiplas e variadas expressões da história do culto aos antepassados [para isso, ver Granet, 1922; Baker,1979 e Coe, 2016]. Queremos partir de nossa provocação inicial para pensarmos como a veneração aos antepassados se encaixa nas mudanças religiosas que ocorreram ao longo dos milênios. Vamos iniciar com duas considerações fundamentais; o papel do sonho e o nascimento da alma, e a formação da concepção genealógica genética de família e de relacionalidade. O papel do sonho na formação do conceito de alma Como sabemos, as primeiras ideias sobre a existência de alma surgiram ainda nos tempos primitivos. Imaginemos essa cena: duas pessoas estão debaixo de uma árvore, e uma delas decide dormir e pede ao seu amigo que fique de vigia, para que nenhum animal possa ameaçar seu descanso. Mas quando ele dorme, ele sonha, e nos seus sonhos ele realiza tarefas impossíveis e entra em contato com parentes e membros da sua Aldeia que já faleceram. Tudo isso parece muito real. Quando ele acorda, pergunta ao seu amigo se este viu o que ele fez, e as pessoas com quem ele encontrou. Seu amigo responde: ‘você não saiu daqui, parecia que estava morto, mas voltou’. Dessa experiência, ambos concluem que o seu corpo é apenas a casca de alguma coisa que está escondida. É o seu ‘eu interior’, e que será chamado em algum momento de alma ou espírito, o nosso verdadeiro sentido de existir. Por essa Novos Estudos em Extremo Oriente 28 razão, viver é um estado transitório, o ‘Sonho da borboleta’ de Zhuangzi [Zhuangzi, cap.2]. Essa concepção é fundamental para estrutura da religião chinesa, assim como de muitos outros cultos animistas e do xamanismo [Bueno, 2019]. Os primeiros xamãs usavam os sonhos para realizar em curas e aprender com os antepassados como viver no mundo, e como se preparar para caminhada espiritual. Li Zehou, Jana Rosker e o Xamanismo Para autores como Li Zehou e Jana Rosker [2020], o xamanismo foi a base do nascimento dos rituais, e é considerado a primeira sistematização racional sobre a realidade espiritual e meio de estabelecer contato com os espíritos. Da mesma forma, os espíritos dos falecidos estão na base da formação do clã e da Comunidade, formando os membros que deram origem a sociedade. Essa concepção ritual foi trabalhada em vários níveis diferentes, existindo os antepassados da família, da comunidade, e em escala macrocósmica, os antepassados fundadores da nação e do Estado Imperial. Esperava-se que mundo material manifestasse uma hierarquia igual a que existia no mundo espiritual, fazendo com o que um mundo fosse a representação do outro [Feuchtwang, 1992]. Esse processo de interconexão que funciona no plano material e espiritual dá origem ao que chamamos de pensamento relacional, ou seja, de como todas as coisas estão conectadas por meio de um sistema de relação, no qual a categorização das formas corresponde a princípios Genealógicos espiritualizados de organização. Esse sistema era fundamental para entender que as relações de organização familiar estavam inseridas no mundo da natureza, e pertenciam a uma ordem hierárquica da cosmologia criativa que ordenava o universo. É o que aparece, por analogia, quando estudamos o ‘Livro das mutações’ [Yijing], que nos apresenta imagens como formas codificadas das expressões da natureza. O que aprendemos quando deciframos as composições e arranjos de trigramas e hexagramas é que o mundo pode ser explicado por um sistema de símbolos que cristalizam, para o nosso intelecto, as leis do sistema Ecológico do mundo. As representações do Livro das mutações, assim como a escrita chinesa, são sistemas de expressão invocativa, que pretendem, por meio da imagem, suscitar a compreensão de uma ideia ou, em um nível metafísico, a expressão da alma. O sinólogo Ricardo Joppert [1996, 12] definiu isso com grande clareza, quando demonstrou que a compreensão dos princípios coordenadores da matéria está subjacente ao processo de lapidação da pedra bruta do Jade, revelando a joia escondida. Então podemos compreender que existe uma subjetividade aparente na expressão de símbolos, nas imagens que constituem o código do mundo. A veneração ao ancestral faria parte da estrutura que conecta o ser humano com o nascimento da Cultura, atributo fundamental da concepção da própria Novos Estudos em Extremo Oriente 29 humanidade [o ‘Ren’ confucionista]. Por causa disso, acreditava-se que os ancestrais não apenas fundaram a civilização, mas também protegiam a família, a comunidade e o país. A genealogia como sentido de existir Por essa razão, desde a antiguidade, o sentido de existir chinês seria dado pela genealogia familiar que insere uma pessoa dentro do mundo e de sua comunidade. Ela é material também: sua existência fundamenta o compromisso da Piedade filial como valor fundamental de continuidade, de respeito à hierarquia, e de ordem social. Confúcio concedeu uma importância crucial para a veneração dos antepassados e a manutenção da Piedade filial como dois elementos responsáveis pela administração da ecologia social e da conservação da estrutura política. Confúcio estava preocupado em cultivar o exemplo e o espírito estimulante dos antepassados para garantir que a cultura chinesa continuaria a sobreviver e a se desenvolver. Confúcio não era totalmente conservador, nem pretendia que a cultura parasse no tempo. O que ele desejava é que as grandes ideias e os grandes personagens que surgiram no passado continuassem a servir de impulso para o aperfeiçoamento da sociedade. A veneração aos ancestrais fazia parte da manutenção de uma ideia religiosa e de um sistema epistemológico de incentivo a criação de conhecimento e de manutenção da harmonia com a natureza. Contudo, Confúcio deixou uma mensagem ambígua sobre a veneração aos ancestrais. Não há dúvida de que ele acreditava no mundo espiritual, mas em várias ocasiões, ele fez questão de deixar bem claro que acreditava nas ações humanas, e que muitas vezes não deveríamos contar com ajuda dos Deuses. Como podemos ver nessa descrição que inicia o livro da Piedade filial: “Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te de novo e te explicarei a questão. Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada fragmento de pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos atrever-nos a danifica-los ou feri-los. Este é o começo da piedade filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais, continua com o serviço do governante, e se completa pela formação do caráter”. [Xiaojing, 1] Se Confúcio realmente pronunciou essas palavras, então o sentido de Sinidade estava calcado em uma herança genética, absolutamente material, e que se reproduzia na memória. Assim, como ficaria ação espiritual dos ancestrais na proteção e na orientação cotidiana da família e das pessoas? Em geral a população continuou acreditar no intercâmbio entre o mundo material e o mundo espiritual, como fica evidente nos funerais e nos métodos Novos Estudos em Extremo Oriente 30 de veneração aos antepassados, em que muitos presentes que representam riquezas, dinheiro e bem-estar material são depositados ou queimados em homenagem ao falecido. Essa noção é interessante por que ela pressupõe que os espíritos continuam em contato com o nosso mundo ininterruptamente. O desafio da mediunidade e reencarnação Esse contato é reforçado pelas crenças da religiosidade popular, ou Religião dos Espíritos [Shenjiao], que defende a prática da mediunidade como uma forma de entrar em contato com o mundo espiritual e receber orientações e respostas aos dilemas da vida. Há uma discussão, principalmente a partir de Zhuangzi, se existiria ou não a ideia de reencarnação na China antiga. Em função de nosso espaço de tempo, não nos aprofundaremos nessa discussão; o que importa para nós é que, depois
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